O Alentejo é o destino do mês de junho na Ambitur.pt. Num roteiro de cinco dias pela região do baixo, norte e centro deste vasto território, pudemos conhecer melhor as histórias e “estórias” de projetos, imóveis, centros interpretativos, lugares de “culto” aos vinhos e à boa gastronomia alentejanos, sempre contadas pelos próprios, por quem ali vive e melhor do que ninguém sabe do que está a falar.

A expressão “um ponto por quadrado” na tapeçaria de Portalegre refere-se à técnica de tecelagem onde cada quadrado de um papel quadriculado (da imagem que se reproduz) corresponde a um ponto na tapeçaria final. Este ponto por seu turno significa que se utilizam oito fios de trama. Os fios da teia formam a estrutura da tapeçaria e são dispostos verticalmente no tear (estrutura fixa), enquanto a trama é composta pelos fios que são tecidos horizontalmente entre os fios da teia, criando o desenho e a textura, pelas mãos das tecedeiras. O segredo da Tapeçaria de Portalegre, nesta construção é pois a aplicação do nó, em vez de se entrelaçar à trama. Assim permite-se, por exemplo, a criação de degradês na utilização dos oito fios da trama ou sobreposições ou contornos precisos que não é possível de outro modo. A técnica permite reproduzir fielmente desenhos complexos e ricos em detalhes, tornando cada peça uma obra de arte única, seja esta uma reprodução de outra obra-prima ou na utilização de um original. Fomos espreitar o que o Museu da Tapeçaria de Portalegre – Guy Fino tem para nos mostrar e contar.
Paula Fernandes, diretora do Museu, indica-nos que ainda há outros segredos, nesta tradição artesanal, em algo que parece tão simples: “a desenhadora é muito importante e um dos elementos chaves neste processo”, mas “todo o significado na tapeçaria de Portalegre está nas mulheres, através das suas mãos, que a tecem”. Seja qual for a total abrangência do significado desta última a citação, a verdade é que é carregada de simbolismo. Um significado que nos remete para a história, para a tradição e para o papel, muitas vezes silencioso da mulher, na sociedade, e, ao mesmo tempo, na criação de algo que facilmente é apelidado de obra-prima para outros apreciarem.
Perguntámos a Paula Fernandes se já havia experimentado o processo, esta sorri, “já tentei sim, o ponto em si é simples, como apertar um sapato, mas o resto do processo é complexo”.
A tecelagem na região
O Alentejo sempre foi uma zona com muita lã – houve muitas ovelhas por aqui, que continuam a haver – e também desde cedo se procurou a sua pigmentação, havendo vestígios das alturas dos mouros. Portugal por seu turno sempre teve uma tradição têxtil, mas não de tapeçaria. Marquês de Pombal tentou mudar essa situação, após o terramoto de 1755 incentivando a fundação de duas fábricas de tapeçarias, uma em Lisboa e outra em Tavira, que tiveram uma vida limitada. Portalegre assiste, 200 anos depois, a uma nova intenção de desenvolvimento desta atividade, mas desta vez mais arrojada, conseguindo uma arte têxtil distintiva que ganhou prestígio, permitindo que as suas obras se destacam num meio nacional e internacional.
Entram três personagens nesta história. “O meu pai e o um amigo fizeram uma empresa para tapetes de ponto-nó e nessa altura o Manuel do Carmo Peixeiro, que era pai do sócio do meu pai, veio desafiá-los a fazerem tapeçarias murais decorativas com um ponto que ele tinha inventado 20 anos atrás. E assim começa a aventura da tapeçaria”, indica uma das filhas de Guy Fino, um dos atores desta peça, referindo-se ainda ao sócio Manuel Celestino Ribeiro e seu pai, num vídeo que fala sobre os primeiros tempos desta aventura, no Museu da Tapeçaria de Portalegre.
Em 1946, Guy Fino e Manuel Celestino Peixeiro resolveram investir na tradição dos tapetes de ponto de nó, tendo a primeira tapeçaria surgido em 1948 sob cartão de João Tavares.
As representações distintivas
As tapeçarias de Portalegre são o suporte artístico, funcionando como decoração, mas também trazendo as características dos têxteis, tornando os espaços mais acolhedores e ajudando na climatização, indica Paula Fernandes, acrescentando que a contemporaneidade vem do próprio Guy Fino, que convidou artistas para fazerem ou cederem obras. Outra palavra que entra neste léxico é a do cartão. Estes ao fim e cabo eram os esboços das obras para reproduzirem, que podiam ser originais ou cópias de outros originais, como quadros. Destes cartões as obras passam para as desenhadoras que têm que fazer uma reprodução desses cartões à escala real do tapete que se pretende, numa base quadriculada, que servirá de guia para as tecedeiras. Indica a nossa guia, que a tecelã tem interagir com o desenho e entender a quantidade de cor que determinado ponto exige e regista que em média uma tecedeira pode levar um dia para cinco centímetros de altura de ponto.
Instalado na casa nobre da família Caldeira Castelo-Branco (portal do séc. XVIII), o Museu da Tapeçaria de Portalegre – Guy Fino é um museu dedicado à apresentação, conservação e estudo de deste património artístico nacional. O museu encontra-se dividido em duas áreas, no piso térreo, é possível observar a componente histórica e os processos técnicos relativos à manufatura de tapeçarias. No primeiro piso estão expostas obras de tapeçaria que acompanham a sua evolução desta arte. Ainda ali está exposto o primeiro tapete que há registo.
O reconhecimento da tapeçaria de Portalegre acontece seis anos depois do seu arranque pelos tapeceiros franceses que se deslocaram ao país no âmbito do evento “A Tapeçarias Francesa da Idade Média ao Presente”. Guy Fino, aproveitando a ocasião, resolveu pôr em confronto as duas técnicas, expondo simultaneamente duas grandes tapeçarias sob cartão de Guilherme Camarinha que tinham sido tecidas para o Governo Regional da Madeira. Os técnicos franceses, convidados a visitar esta exposição, validaram a técnica e a perfeição conseguida.
Indica ainda a história que faltava no entanto cativar Jean Lurçat, o renovador da tapeçaria francesa. Depois de um primeiro contacto em 1952, Guy Fino conseguiu convencê-lo a visitar a Manufactura em 1958. Aí confrontou-o com duas tapeçarias: uma tecida em França e que o próprio Jean Lurçat oferecera à esposa de Guy Fino e a sua réplica, autorizada, tecida em Portalegre. Convidado a identificar a tapeçaria francesa, Lurçat escolheu a tecida em Portalegre. Foi este o mote para a internacionalização das tapeçarias de Portalegre.
A manufatura estabeleceu parcerias com diversos artistas portugueses e estrangeiros, como Almada Negreiros, Vieira da Silva, Júlio Pomar e Paula Rego, que criaram obras especialmente para serem traduzidas em tapeçarias.
Desafiamos Paula Fernandes a escolher uma obra da exposição permanente, esta reflete e elege a “Biblioteca” de Maria Helena Vieira da Silva, de 1982. Refere que a desenhadora levou um ano neste projeto e que a complexidade de execução foi muito elevada.
São dois os núcleos distintos do Museu, sendo que num deles se apresenta a componente histórica relativa à manufatura de tapeçarias de Portalegre, bem como os processos técnicos de execução da tapeçaria em si; o outro, em contrapartida, dedica-se à apresentação exclusiva de obras de tapeçaria, seguindo a cronologia da Tapeçaria de Portalegre, desde o seu nascimento – finais dos anos 40 do séc. XX –, até à atualidade.
Para além da exposição permanente, o museu integra um espaço para exposições temporárias, destinado a iniciativas ligadas à temática da tapeçaria e às artes plásticas, tornando-se acima de tudo um museu de arte contemporânea.
Ali, podem ser vistas obras de uma grande variedade de autores nacionais e estrangeiros que têm feito tapeçaria em Portalegre, de entre os quais se destaca Almada Negreiros, Guilherme Camarinha, Maria Keil, Júlio Pomar, Vieira da Silva, Maria Velez, Costa Pinheiro, Sá Nogueira, Lurdes de Castro, Eduardo Nery, Menez, Graça Morais, José de Guimarães ou ainda Jean Lurçat e Le Corbusier, entre muitos outros.
O museu possui ainda uma galeria de exposições temporárias e um auditório para 150 pessoas. A cafetaria, o foyer e o jardim são espaços complementares de fruição pública, com capacidade de adaptação a diversas atividades de carácter lúdico e cultural.
Paula Fernandes, diretora do Museu da Tapeçaria de Portalegre – Guy Fino, mostra apreensão e esperança relativamente à tapeçaria de Portalegre, refere no entanto que a falta de procura por estas peças e a existência de uma só um desenhadora no ativo são desafios, mas o aumento de procura poderá mudar o cenário e destaca que se regista “muitos visitantes portugueses, tendo o Museu muita procura, acima do normal para um museu no interior do país”.