Capital Humano: “Remotos em Proximidade”

Por João Silva Santos, líder da BlueShift Talent*

O trabalho remoto é uma realidade cada vez mais presente nos nossos dias. Se, por um lado, existem áreas de atividade em que as vantagens são evidentes, e em que essa evolução é bastante natural, poderá um setor de proximidade como a hospitalidade assimilar esta nova realidade?

Para além dos desafios económico-financeiros, a situação de pandemia tem trazido ao tecido empresarial dilemas organizacionais exigentes, muitos deles novos. Um dos exemplos mais expressivos é o recurso ao trabalho remoto, inédito para muitas organizações do sector da hospitalidade. Se o desempenho de funções fora do espaço de trabalho em hotelaria tinha vindo, até então, a circunscrever-se a situações muitos excecionais, ou a posições de topo ou suporte afetas a estruturas supra-unidade, os estados de confinamento vieram alterar esse paradigma.

A diminuição do volume de negócios a partir do passado mês de Março obrigou à redução drástica das equipas no terreno, tendo forçado muitos colaboradores operacionais a uma paragem, e as demais equipas de áreas de suporte a exercerem funções a partir das suas residências. Se a retoma parcial a que se assistiu em meados de Junho permitiu o regresso às unidades de mais profissionais front of the house, grande parte das equipas de suporte permaneceram, por razões logísticas e sanitárias, mais tempo em casa, ou continuam até agora nesse modelo.

Assiste-se, assim, à implementação de um desenho novo para as organizações do setor, de caráter híbrido, em que as equipas presentes na unidade e o apoio remoto dos profissionais não-operacionais se complementam em espaços físicos distintos. Este é, de resto, um modelo que diversos analistas apontam como o futuro das organizações na era pós-Covid-19. Num estudo recente, o The Boston Consulting Group refere um inquérito em que gestores oriundos de vários setores de atividade antecipam que 65% da força laboral adote esta modalidade de trabalho nas organizações que dirigem.

No entanto, a velocidade a que se deu esta transição, com uma margem praticamente nula para adaptação a mudanças tão estruturais, trouxe um contexto de disrupção ao quotidiano das empresas de hotelaria e restauração. Entre os inúmeros desafios enfrentados, destacam-se de seguida três dos mais exigentes, que continuam a marcar a atualidade: a desmaterialização, a comunicação e a tecnologia.

O primeiro desafio é o da desmaterialização. Um dos grandes choques culturais para o capital humano em hospitalidade foi precisamente o de atravessar uma das fases de maior incerteza laboral sem o acesso presencial às equipas que tradicionalmente fornecem um apoio importante no esclarecimento de questões fundamentais para o profissional. Sem a possibilidade de consultar presencialmente a equipa de Direção, os departamentos de Recursos Humanos, Financeiro, ou de Marketing, normalmente disponíveis na porta ao lado, e , ainda por cima num contexto de condicionamentos de atendimento nos serviços públicos (Finanças, Segurança Social, IEFP etc.), o sentimento de vulnerabilidade por parte do cliente interno subiu em flecha. Quer para as equipas que continuaram no terreno, quer para colaboradores em regime de lay off, os condicionamentos de interação com as equipas de suporte provocaram elevados níveis de ansiedade, influenciando negativamente o foco necessário à gestão de um cenário já de si difícil e marcadamente imprevisível.

O segundo desafio é o da comunicação, que sofreu alterações profundas em resultado da referida desmaterialização. Com a impossibilidade de contextos presenciais, o formato telefónico e o e-mail sofreram um abrupto aumento de volume entre as equipas, originando em muitos casos um congestionamento fatal para a eficiência de processos. Esta ineficiência de processos traduz-se, em muitos casos, em assuntos sem seguimento ou temas prioritários esquecidos entre conteúdos intermináveis. Adicionalmente, a ausência de elementos como a linguagem não verbal – tom de voz, expressão facial, etc., potenciam erros de perceção e atritos interpessoais, conduzindo muitas vezes a problemas entre membros das equipas, já emocionalmente fragilizados pelo contexto geral.

Por fim, a tecnologia. Sendo um pilar fundamental deste novo desenho organizacional, é simultaneamente um desafio que se traduz em diversas condicionantes ao nível das equipas. A heterogeneidade, quer ao nível das condições tecnológicas de que cada trabalhador dispõe na sua residência, quer da sua apetência para utilizar as novas ferramentas e aplicações necessárias à gestão remota da sua função, resultam inevitavelmente em morosidade de processos e eventual desmotivação. Este aspeto reveste-se de uma complexidade acrescida para a empresa, visto que o contexto remoto evidencia, neste e noutros casos, uma fronteira ténue entre a dimensão pessoal e profissional do colaborador.

Os três desafios referidos, que se juntam aos demais que o atual contexto apresenta às empresas, exigem um elevado nível de resiliência e criatividade. São diversas as respostas que as organizações têm seguido no sentido de se reinventarem, obtendo resultados promissores.

Dada a inevitável desmaterialização e a reconfiguração dos processos de comunicação internos, diversas equipas de Recursos Humanos têm rentabilizado canais de comunicação real time para potenciarem a proximidade com cada colaborador, como grupos de Whatsapp, Telegram, Messenger, e outros. Criam-se, assim, espaços de comunidade, onde a equipa partilha informação relevante e se entreajuda.

Este tipo de iniciativas tem, em alguns casos, sido complementado com a definição de horários de atendimento telefónico exclusivamente para esclarecimento de dúvidas e apoio ao colaborador. Com o proliferar dos canais de comunicação eletrónica em uso, diversas empresas têm, ainda, desenvolvido protocolos precisos, definindo “como” e “quando” utilizar cada um, aumentando a eficácia e eficiência na sua utilização. Adicionalmente, diversas rotinas das equipas – briefings, formações, etc. – têm sido adaptadas às especificidades do formato virtual e transpostas para vídeo calls, ultrapassando barreiras logísticas e salvaguardando assim as dinâmicas de grupo, ao mesmo tempo que protegem a coesão das equipas de trabalho.

Por último, é relevante referir o papel providencial que a redefinição das prioridades de formação tem tido para gerar as competências necessárias a esta nova realidade. Quer ao nível de soft skills comportamentais – inteligência emocional, gestão de tempo, comunicação, etc. –, quer a nível técnico – software colaborativo, sistemas de cloud, software de comunicação, etc. –, esta tem sido também uma frente estratégica para que, em tempo recorde, se alcance a tão desejada “imunidade de grupo” organizacional, que permita às equipas do setor fazerem face a um paradigma radicalmente diferente daquele que sempre tiveram.

*Este é o quinto de uma série de artigos intitulada “Capital Humano”, publicados por João Silva Santos, responsável do centro de competência de HR Management e líder da consultora de RH BlueShift Talent, que a Ambitur.pt irá publicar todos os meses.