(Crónica de Viagem – parte IV, fim) Ao chegar a Lisboa despejei os reais que me sobravam na carteira. Duas moedas de 50 centavos, uma de um real e três notas de dois reais, bem visadas pelo Banco Central do Brasil. Em uma delas chamou-me a atenção um rabisco com o nome Paula. Quem assinaria uma nota nos dias de hoje? Com que fim? Espera hoje que ela um dia lhe retorne? Não sei. Mas outro aspeto me forçou a curiosidade, três tartarugas serigrafadas na nota. Olhando e tentando decifrar a sua espécie, de acordo com informações apreendidas no Tamar, arrisco a adivinhar que é uma tartaruga Pente, mas já lá iremos.
Praia do Forte e as tartarugas da Bahia
A Praia do Forte é uma dos chamariz turísticos da região da Bahia. Pelo projeto Tamar, de preservação de tartarugas, pelo Ecoresort da região, um dos melhores do Brasil, mas também pela vila pesqueira que é um dos principais locais de passeio e compras para os turistas.
Mas antes disso, o grupo teve oportunidade de visitar e conhecer as ruínas e história daquilo que lhe dá verdadeiramente o nome: “Forte” ou a torre que ali apelidam de Castelo Garcia D´Ávila. Construído a partir de 1550, quando Portugal avançou para uma segunda colonização do Brasil, no alto da Colina de Tatuapara, esta será a primeira grande edificação civil portuguesa no Brasil e é um marco do início da colonização no país. O edifício foi construído entre 1551 e 1624 e, inicialmente, foi utilizado como uma fortificação para proteger o território colonial de Portugal, devido a sua localização estratégica. Mais tarde, terá se tornado a sede do maior latifúndio da época, que se estendia da Bahia até ao Maranhão, o que nao é coisa pouca. A apenas três quilómetros da vila de pescadores, esta foi recentemente e parcialmente restaurada, possuindo agora um museu interativo e alguma peças achadas em escavações no local e na região.
A edificação está inserida num Parque Histórico e Cultural do qual também fazem parte o sítio arqueológico e a área envolvente, e um projeto dos arquitetos Rose Lima e Fritz Zehnle Jr. que permitem vivenciar uma experiência de imersão histórica com tecnologia digital. Ali também se pode ter acesso à capela Nossa Senhora da Conceição, do século XVI, que foi restaurada.
Projeto Tamar
Na Praia do Forte, em uma das ocasiões, fomos recebidos por Alexandre de Lima Rossi, da Secretaria Municipal do Turismo da Praia do Forte, que nos indicou que “hoje temos uma oferta de 9600 camas no nosso município – Praia do Forte, Imbassaí, Santa António e resort Costa do Sauípe. A noite aqui é bem pulsante, muita gente vem de Salvador para cá. Para além da oferta de pousadas, temos hoje condomínios que secundam a Praia do Forte, que movimentam a vila.” Passando para o tópico da gastronomia, indica Lima Rossi que “moqueca é tudo o que a gente faz com frutos do mar e que acrescenta leite de coco e o azeite de dendê (o óleo de palma). Ensopado, é da mesma forma, mas não tem o azeite de dendê”. Alternando novamente a conversa leva-nos então às tartarugas: “Na costa da Bahia, especialmente no litoral norte, durante a primavera (junho a outubro) ocorre um encontro natural e fascinante: as baleias jubarte migram para as águas mais quentes para reprodução e alimentação, coincidindo com a época em que as tartarugas marinhas desovam. Fazemos uma grande festa nessa altura, a gente gosta de muita festa”. Antes de se despedir de nós, deixa um Axé no ar, significando boas energias!
Continuando pela Praia do Forte, seguimos a sua rua principal, de onde o transfer nos deixou, até ao seu término, o projeto Tamar, um centro de investigação e preservação de tartarugas. Reza a história que em 1982, quando os pesquisadores do Projeto Tamar chegaram, a Praia do Forte era uma pequena vila com 500 moradores, sem luz elétrica, onde se chegava atravessando de balsa o rio Pojuca. A relação com a comunidade terá nascido aos poucos, sendo a convivência com os habitantes locais e o entendimento sobre seu conhecimento tradicional fundamental para iniciar os trabalhos de proteção das tartarugas marinhas na região. Ao longo dos anos, com a dedicação e conscientização dos moradores e turistas, a base de pesquisa e o centro de visitas foram se consolidando. Em duas décadas, a vila se transformou em pólo turístico nacional e internacional.
A guia que nos ajudou durante a visita a este espaço, da qual não fixei o nome, dá outros pormenores, “este é um projeto com 45 anos, que começou com um grupo de estudantes de oceanologia que monitorizaram o litoral brasileiro à procura de conchas e moluscos, para um projeto da faculdade, num conjunto de ilhas próximo a Fernando de Noronha. Lá eles avistaram pela primeira vez tartarugas marinhas a saírem da água, mas era uma situação comum para as populações do litoral brasileiro, sendo que coletavam os seus ovos, consumiam a sua carne e o seu casco para joias”. Esse trabalho terá sido documentado numa faculdade no rio Grande do Sul. Após alguns anos e depois de uma pressão internacional o Brasil teve que se posicionar para a proteção destas espécies na sua orla, tendo então resgatado esse trabalho inicial e começado os primeiros projetos de conservação marinha no Brasil. Hoje o Tamar tem 22 bases no litoral brasileiro, com o intuito de conseguir acompanhar um ciclo reprodutivo e de alimentação das tartarugas marinhas.
Existem hoje referenciadas sete espécies de tartarugas marinhas, sendo que o Brasil tem cinco. No caso da Praia do Forte regista-se quatro das cinco (Oliva, Pente, Cabeçuda, Verde e Couro) espécies a desovar. “A Cabeçuda é espécie campeã de desova na Bahia e consegue morder a 200 kg de força. A de Couro que mergulha a mais de mil metros de profundidade pode chegar a mais de dois metros desde a cabeça à cauda. A Verde é a mais comum no litoral brasileiro. A Oliva é considerada a mais sofisticada porque gosta de comer camarão. A Pente tem um bico fino, alimenta-se em lugares apertados como rochas e corais e um casco esticado”, indica a guia. Esta última foi então a espécie escolhida para as minhas notas de dois reais, das quais fiquei com três.
Entre tanques e aquários, ali temos acesso a 750 mil litros de água salgada com exemplares da fauna marinha da região e de quatro espécies de tartarugas marinhas.
Os cabos elétricos transmutam-se aos nossos olhos
Choveu. Estivemos alguns dias sem chover na Bahia, o que não é assim tão habitual. Muitos se lamentaram de tanto sol, pois só passados alguns dias tivemos oportunidade de mergulhar nas suas águas quentes, pois os primeiros dias da nossa jornada foram dedicados à inspeção de hotéis da região.
A ação do vento do nordeste brasileiro sente-se na ondulação, assim como na popa das embarcações. O vento ameniza a percepção do calor, mas não dissipa a temperatura média da região, que neste março oscilou entre os 26 graus de mínima e os 31 de máxima, sem grandes desvios de dia para dia e uma temperatura de água que se aproxima dos 28 graus. Umas Caraíbas, mas com ondas.
A 31 de março choveu na Bahia, alguém cantarolou – alegre e jovialmente, como se aguardasse há algum tempo este preciso momento – Tom Jobim: “São as águas de março fechando o verão. É a promessa de vida no teu coração”. Sim, na Bahia, iniciou-se o outono, uma estação tão quente como outra qualquer.
Sendo esta uma época baixa, sem os turistas brasileiros, as lojas (tanto na zona histórica, como na Praia do Forte) ficam totalmente disponíveis para atender por quem lá passa nestes dias. Muitas Havaianas vieram connosco para Portugal, sabonetes, biquínis e batons Carmed, que até sabor a pipoca têm, fiquei ali a saber.
Será que tudo o que tem um início terá mesmo que ter um fim? Os fios que transportam eletricidade perdem-se nas habitações de Salvador, a sua carga elétrica é então transformada para outros fins. Mas ali continua ele, o emaranhado de fios, naquela rua. Assim como as fitas do Bonfim.
“A Igreja do Bonfim é a que consagra Salvador, a cidade tem vários padroeiros e padroeiras. Mas consideramos o Bonfim o nosso padroeiro, como em Setúbal, Portugal, onde fica a matriz. O vosso Senhor do Bonfim protege os homens, na Bahia protege os homens e navegantes”. Despede-se o nosso guia: boa “maresia”, que em baianês nos tenta transmitir um desejo de sensação de leveza e calma.
As fitas do Bonfim, como os cabos elétricos, ali continuam, em Salvador, com desejos e pedidos de negros, brancos, asiáticos, de crianças, adolescentes, velhos e daqueles que não têm idade. Diria que em alguma parte houve uma transmutação dos fios elétricos para as fitinhas do Bonfim, pois são vários os locais na Bahia pejados de tantas. Como se ali estivessem despejados e depositados os desejos do mundo, de todos os humanos que têm fé ou simplesmente esperança (será este o significado da Roma Negra?). A Bahia é uma vivência que não se pode perder, a não ser que não queira lá ficar perdido.
