Este hotel dava uma música

Algures no centro histórico de Coimbra, a paredes-meias com a Universidade, a ilustre Biblioteca Joanina e outros símbolos conimbricenses, o músico André Sardet estreou-se em grande na hotelaria, com o Sapientia Boutique Hotel. Um local com histórias para contar é o que este hotel tem para oferecer e o que Sardet quer é que os seus hóspedes conheçam um pouco mais sobre a história do lugar e sobre a cidade, e que levem também a recordação do bom vinho que se faz em Portugal.

Como se dá este encontro entre o André Sardet, até aí com uma vida sempre dedicada à música, e a hotelaria?
Foi obra do acaso. Comecei com um pequeno alojamento local, perto da minha casa, as Casas da Alta de Coimbra. Inauguraram no final de 2013, numa altura em que não havia praticamente alojamentos locais em Coimbra. Foi o primeiro prédio de apartamentos com serviços em Coimbra e só depois disso é que se deu o grande volume. A primeira ideia era ser um investimento tradicional em termos de arrendamento. Só mais tarde é que pensei que fazia falta este tipo de oferta, porque eu sou frequentador de espaços sempre mais pequenos, mais acolhedores… Já há alguns anos que sempre que posso deixo os hotéis maiores… Acabei por me entusiasmar com o setor e, passado algum tempo, apareceram estes três prédios onde abriu o Sapientia e achei que era importante fazer alguma coisa também pela cidade, pelo património e pelo turismo… E foi de facto um processo que se iniciou também no final de 2013.

E porquê agora?
Não é uma causa-efeito, nem há nenhum objetivo de me ligar mais a um setor ou menos a outro. Foi um apelo que quis seguir e aceitar, porque acho que era importante tentar fazer alguma coisa pela cidade também e aqueles três imóveis apaixonaram-me desde o primeiro momento

De todas as áreas ligadas à atividade turística, sempre quis ter um hotel. Porquê?
Pensei várias vezes abrir um restaurante e o hotel também tem uma parte de restauração. Embora sempre tenha fugido disso, porque a parte da restauração exige muita presença e dedicação e, por esse motivo, nunca abracei nenhum projeto ligado à restauração.

A ideia que tinha do “seu” hotel corresponde à realidade?
Acho que não há ideias estanque. Portanto, o projeto foi evoluindo, de uma recuperação de edifícios do século XVIII e XIX e, à medida que eles foram sendo recuperados fomos descobrindo surpresas – umas mais agradáveis do que outras -, mas a maior parte delas fizeram com que o resultado que temos hoje seja um bocadinho diferente do projeto original. Dou-lhe o exemplo de uma cisterna do século XVI que foi encontrada e que hoje é a garrafeira do hotel e, portanto, é um espaço logo na entrada que as pessoas vêem através de um vidro e é muito interessante que ela lá esteja, porque dá uma alma que se não existisse não teria. Outra das coisas que aconteceu, através de uma recolha histórica profunda que fizemos, foi percebermos quem viveu naqueles prédios e quais as áreas a que estiveram ligados, e uma delas é o vinho. Tínhamos um grande produtor de vinho do século XIX que viveu numa daquelas casas. Também surgiu assim um tema que não teríamos se não tivéssemos feito essa recolha, porque os projetos não são estanques, vão evoluindo.

Recorda-se de alguma história nessa pesquisa que o tenha marcado mais?
Antigamente, na ponta do pátio da Universidade, havia um observatório astronómico mandado construir pelo Marquês de Pombal, que foi destruído no Estado Novo e viveram ali pessoas. Ali viveu, por exemplo, a primeira pessoa a tirar fotografias da lua em Portugal – é por isso que temos um rooftop que se chama Cheio de Estrelas e é por isso que temos uma ligação à fotografia. Em todos os corredores do nosso hotel é possível descobrir um bocadinho mais sobre como era Coimbra antigamente. Há uma exposição permanente que vai sendo obviamente mudada de tempos em tempos, mas está disponível para todas as pessoas visitarem.

Depois temos os livros. A maior parte das pessoas que ali viveram editaram livros, desde Astronomia a Botânica. A República teve ali também um papel muito importante porque antigamente Coimbra era o centro político do país e ali viveram pessoas como José Falcão, o líder da República entre Coimbra e o Porto, com um papel importantíssimo na conspiração contra a Monarquia. O sogro dele, o “tal” Antoninho Vidal que dá o nome ao nosso vinho, também foi o primeiro deputado a declarar-se republicano na altura da Monarquia e nós temos acesso ao livro pessoal dele, onde escrevia que livros mandava vir de França, livros de corrente republicana.

Além disso, temos um espaço no hotel, a Tasca das Tias Camelas, onde servimos os pequenos-almoços, almoços e jantares, que era uma tertúlia literária no século XIX em Coimbra, por onde passou Eça de Queiroz, Antero de Quental e tantos outros nomes ligados à literatura. Por isso também temos essa assinatura, Books & Wine. Livros porque estamos no coração da cidade, o coração do saber de Coimbra, e também porque todos os nossos quartos têm o nome de um escritor que passou por Coimbra.

O que lhe despertou mais a atenção e o fez perceber que aquele era o local ideal?
Uma localização absolutamente preferencial, em primeiro lugar. Estamos a 20 metros do edifício-mãe, o monumento mais visitado em Coimbra: a Biblioteca Joanina. E a outros tantos metros de todo o complexo da Universidade. Temos uma vista fantástica sobre o Rio Mondego, a cidade e o próprio pátio da universidade. E, ao mesmo tempo, foi o facto de ser muito difícil encontrar em Coimbra, sobretudo no Centro Histórico, três edifícios contíguos e disponíveis, porque, muitas vezes, aparecem edifícios, mas não próximos em termos geográficos. Portanto, a oportunidade de juntar três imóveis, ainda por cima com um pátio central, também foi uns dos motivos que nos fez ter vontade de avançar.

Qual o conceito deste hotel, que história quer contar?
É uma homenagem a Coimbra, ao país e é também a assinatura “Books & Wine”. Temos a hora do vinho, onde às seis da tarde, quando toca o sino da Universidade, as pessoas se juntam na Tasca das Tias Camelas para beber uma taça de vinho, e isso com os livros é uma junção perfeita. No fundo queremos que as pessoas conheçam um bocadinho mais sobre a nossa história, sobre o nosso país, sobre a nossa cidade e levem também a boa recordação do bom vinho que fazemos em Portugal.

Como se faz o equilíbrio entre o contemporâneo e o respeito pelo passado?
Esse foi o grande desafio, respeitar a pré-existência e, ao mesmo tempo, “casar” três edifícios que são muito diferentes entre si. Era preciso encontrar um fio condutor e tivemos o apoio da DepA, que é um gabinete do Porto, e a decoração foi feita por mim e pela minha mulher, essencialmente, mas com o apoio de todos os sócios. Mantivemos os tetos trabalhados, o chão, as escadarias. Tudo o que conseguimos respeitar e manter, foi mantido.

Hoje diz-se muito que um projeto hoteleiro passa por oferecer experiências diferenciadoras. Qual é o elemento diferenciador do seu hotel?
Como eu costumo dizer, o nosso jardim é o pátio da universidade e, portanto, se as pessoas quiserem passear no nosso jardim passeiam no pátio da universidade. Nós temos uma série de experiências, como a hora do vinho, outra intitulada “Às vezes o amor” no qual um casal pode reservar o rooftop para um momento especial. Temos também experiências que podem ser acompanhadas através de uma plataforma que disponibilizamos, uma aplicação que permite acompanhar, através da fotografia, locais que devem ter fotografado, e ao mesmo tempo que as pessoas fotografam acabam por saber um bocadinho mais sobre a história da cidade. Há também a Rota Literária, sobre qual é a ligação de Coimbra a tantos escritores que conhecemos, o que podem saber sobre eles.

Quem é o vosso público-alvo?
Não temos um cliente, temos vários. O facto de sermos um hotel-apartamento permite que as famílias, com todo o conforto, não tenham de ficar em quartos comunicantes ou em quartos separados. É um problema que Coimbra tinha e que, neste momento, não tem. Ao mesmo tempo, permite que pessoas que queiram fazer estadias mais longas tenham um espaço mais confortável para ficar, como se fosse realmente a sua casa. Depois, temos pessoas de vários países que nos visitam. Não há uma regra.

E quem vos procura, diria que é porque este “é o hotel do André Sardet”?
Em alguns casos, penso que sim. Mas, sobretudo, recebemos estrangeiros e acho que esses não sabem quem é o André Sardet.

No último Congresso da AHP, afirmou que a principal dificuldade são os recursos humanos e que, todos os empresários tem uma coisa em comum: “vão morrer antes de ter a equipa perfeita”. O que considera ser mais importante na gestão que faz da sua equipa?
O mais importante é que todos sintam e percebam o hotel da mesma forma. É muito importante que a mensagem que faz parte do conceito e que foi desenvolvida para ser o conceito do hotel seja passada, e muitas vezes isso é muito difícil, porque as personalidades são diferentes – uns mais introvertidos, outros mais extrovertidos, outros têm mais apetência e gosto pela história e outros nem por isso… E, portanto, manter a coerência e a regularidade do serviço, muitas vezes, é o mais difícil.

Como consegue ser músico e hoteleiro?
Hoje em dia a minha mulher está no hotel de forma permanente e isso é uma grande ajuda, porque eu não me consigo afastar de repente de todas as minhas atividades profissionais. Além disso, o meu sócio também está presente sempre que pode e acabamos por nos complementar para estar sempre algum de nós lá no hotel.

Diria que a sua entrada no turismo foi um passo acertado?
Ainda é muito cedo para dizer isso mas é algo que estamos a fazer com muito gosto e motivação.

É mais difícil gerir um hotel ou criar uma letra para uma nova música?
Sem dúvida, gerir um hotel. Podemos usar a criatividade e a imaginação em todas as áreas, e a hotelaria é uma área onde temos que estar em permanente renovação e a criatividade é uma ferramenta importante.

Até agora, o que mais o surpreendeu na hotelaria?
Não consigo identificar aquilo que mais me surpreende, porque tem sido uma boa experiência. De facto, estamos a viver um excelente período em Portugal para o turismo e ainda bem. É, de facto, uma das nossas vocações enquanto país.