Num momento em que tudo parece querer regressar ao “normal” com o processo de vacinação a evoluir positivamente, estivemos à conversa com Gonçalo Rebelo de Almeida, administrador da Vila Galé, que nos recebeu na nova sede do grupo, em Oeiras. O hoteleiro não quis “dourar a pílula” e admite que desde a fundação da empresa nunca houve um momento como o que se vive no setor. Neste momento, defende um esforço “grande” em termos de promoção da marca Portugal para que “sejamos escolha a partir do próximo ano”.
Como avalia o atual ponto de situação do turismo nacional, tendo em conta o contexto pandémico pelo qual passamos? Que premissas considera essenciais como ponto de partida para o futuro?
A primeira nota é que não vale a pena dourar a pílula. Desde que eu me lembro, e já acompanho a história da empresa desde a fundação, não houve uma situação como esta. Durante mais de um ano todas as empresas do setor perderam 60 a 70% das suas receitas. Eu desafio os gestores de outros ramos de atividade a gerirem negócios quando se perde 70% da receita. Quando se fala destes valores, não há milagres na gestão, ou seja, as receitas não dão para cobrir os custos.
É óbvio que houve um conjunto de ajudas do Estado que foram essenciais senão as empresas tinham caído todas, mas não foram específicas para este setor, das quais se destacam o lay-off, com modelos e designações diferentes, na prática, o apoio ao pagamento dos salários que foi fundamental para manter os postos de trabalho, porque é um encargo grande nesta atividade. Por outro lado, apesar de nós não termos recorrido, as moratórias, o que deu alguma folga da tesouraria durante este período. Sem estas medidas seria impossível o setor do turismo em Portugal ter sobrevivido.
Estamos nesta situação desde março do ano passado. A grande maioria terá conseguido chegar com vida à atual época alta. O que acontece é que este verão vai ficar aquém das expectativas. Ou seja, quando se iniciou o ano em janeiro já se falava que o processo de vacinação iria começar e houve algum otimismo nos momentos de arranque relativamente a uma retoma na Páscoa; isso não aconteceu. Depois haveria a indicação de que esta poderia ocorrer em maio/junho, inclusive houve alguns sinais neste primeiro mês em termos de reservas e fluxos turísticos, mas que depois se vieram a gorar. O que sabemos hoje é que junho ficou muito aquém do que se esperava, julho foi ligeiramente melhor que junho e que julho do ano passado, e agosto também será melhor que 2020, mas não muito acima. Acabamos por ter um verão muito condicionado por restrições, por atrasos e dificuldades de circulação.
Do ponto de vista da estabilidade financeira das empresas, isto não significa o adiamento de um mês ou dois de negócio. O que acontece é que perdendo meses de verão importantes onde o setor do turismo cria uma almofada que lhe permite sobreviver nos meses seguintes, a situação torna-se ou continua complexa. Comos os fluxos financeiros e as receitas durante o verão vão ficar muito abaixo das expectativas pode haver novamente problemas de sustentabilidade financeira durante o inverno.
Apesar de existir um cenário que permite antever uma retoma da normalidade a partir de setembro e outubro, depois o inverno é sempre inverno, sendo que os fluxos turísticos baixam sempre, seja ano de pandemia ou não. Ou seja, vão seguir-se quatro a cinco meses difíceis com poucas receitas.
Vão ter que surgir medidas específicas para o setor, para ajudar a superar este inverno, pois o verão não é suficiente, e esperar que a partir de abril/maio do próximo ano as coisas sejam diferentes.
Para estabilizar o setor precisamos de estabilização nas regras e do alívio das restrições à circulação, pois existe a vontade de consumo por parte das pessoas, sendo este o único ponto positivo que temos na nossa realidade. Agora há um conjunto de obstáculos, desde os processos de testagem, dificuldades de ligações aéreas, proibições de circulação, limitações de horário, que tornam muito difícil a retoma desta atividade económica. Ou seja, as dificuldades sentidas hoje já não estão diretamente relacionadas com a pandemia, mas com as regras que estão no terreno por parte de vários países e em Portugal. Por exemplo, no nosso país, os hotéis nunca foram obrigados a testar as pessoas ou controlá-las e é precisamente no final da pandemia que lhes impõem essa obrigação, é algo caricato.
Para a retoma é necessário estabilização de medidas, reposição de rotas aéreas e criar confiança no consumidor, e este último ponto não está relacionado diretamente com o vírus mas com as restrições em todo o processo das viagens. Há problemas hoje relacionados com os atrasos nos serviços, seja com Cartão de Cidadão e Passaportes, onde há uma dificuldade grande na sua renovação. Nem sei o que se passa nos outros países nesta matéria, mas para o outgoing este é um tema particular; se a hotelaria vai faturando alguma coisa, as agências de viagens ainda não. De acordo com o presidente da APAVT, 90% das agências de viagens ainda estão em lay-off, quase sem atividade, pouco é o incoming e o outgoing. O que está a haver é circulação de portugueses em Portugal, sendo que uma percentagem grande marca diretamente com os hotéis. As agências de viagens precisam do outgoing e, para isso acontecer, é necessário que uma série de coisas funcionem e que outras não aconteçam, incluindo greves, seja da Groundforce, do SEF ou da TAP. São acontecimentos que não ajudam num ano muito difícil.
Por outro lado, sempre que as nossas medidas forem mais restritivas do que as dos mercados emissores, perderemos competitividade na atividade turística.
O impacto desta crise no turismo nacional será facilmente ultrapassado ou ficarão marcas profundas que serão debeladas com alguma dificuldade na próxima década?
Não sei se demorará uma década, mas vai levar algum tempo. Quer as moratórias, quer as outras soluções de linhas de crédito, na prática ou empurraram ou aumentaram o endividamento das empresas para fazer face aos custos durante este período. O que significa que terão que ser pagos. Esse pagamento, ao ser efetuado nos próximos anos, irá ter impacto na atividade, quer ao nível do desenvolvimento, da expansão do produto, promoção, como vai haver a necessidade de andar a pagar os custos do país com a pandemia. Isso vai ter impacto no setor.
Porque na prática quando falamos em recuperar negócio é voltar aos níveis anteriores à pandemia, pois o que se perdeu financeiramente está perdido. O primeiro patamar é atingirmos níveis de um ano normal, mas com todo o prejuízo acumulado durante dois anos, sendo o 2022 ainda incerto, seguindo-se no mínimo dois a três anos para pagarmos as dívidas deste período.
Estão a ser trabalhados, por parte do Governo, vários modelos para tentar auxiliar as empresas turísticas, inclusive com a entrada do Estado no capital acionista das empresas. Esta é uma solução?
Esse modelo que está falado e que irá ser usado através do Banco de Fomento ou do Portugal Ventures pode ser uma solução. Na prática, é um modelo de capital de risco que entra transitoriamente no capital social das empresas, sendo que nessa entrada mete um determinado valor, saindo cinco ou seis anos depois. Mas na saída terá que haver um reembolso do capital. Esta é uma alternativa ao endividamento adicional, para empresas que já não consigam aumentar o endividamento, sendo uma solução interessante. Mas também me parece que ainda haja muito mais soluções para além dessa, pois já temos as linhas de crédito a serem usadas. Mas, seja como for, qualquer uma destas soluções tem impacto na atividade da empresa.
No seu entender, ao nível do tecido empresarial das empresas turísticas nacionais, poderão ver-se alterações profundas no período pós pico da pandemia? Aquisições, novos modelos de negócio, abertura de capital…
É provável que durante este inverno venham a acontecer coisas. Houve um aguentar da situação até esta época alta, para se perceber se poderia haver uma ajuda ao nível financeiro da atividade turística em si. Mas quem não tenha capacidade de endividamento adicional terá que procurar soluções ao nível dos vários modelos de transações. Poderá haver aquisições integrais, só venda de propriedades e manutenção da gestão. Haverá com certeza algumas operações no mercado hoteleiro em Portugal.
Olhando para outro país, onde também têm investimentos, o Brasil, as questões que a pandemia levanta ao nível do turismo são similares ou diferentes daquelas que verificamos em Portugal?
São similares, com um desfasamento temporal entre os dois países. Sendo que em Portugal havia um fio condutor, para o bom e para o mau, falando-se a uma só voz e com uma estratégia que englobava o país todo. No caso do Brasil, como é um país federal, os governadores tinham um grande poder na decisão da estratégia a seguir. Ou seja, no Brasil assistimos a políticas diferentes de estado para estado, por exemplo, medidas mais restritivas em São Paulo, menos no Rio de Janeiro, modos diferentes de reagir, houve também uma politização desta matéria mais cedo no Brasil. Nunca houve no Brasil os níveis de confinamento que se assistiram em Portugal ou na Europa; aliás, com exceção desta aérea mundial e da Austrália e Nova Zelândia, as outras zonas do globo dificilmente são confináveis. Não têm sistemas de segurança social, não há apoios sociais, nem o Estado a pagar os salários para as pessoas estarem em casa, nem nos EUA isso acontece.
O impacto financeiro no Brasil também é grande, mas se em Portugal falamos em quebras financeiras na ordem dos 70% nas receitas da empresa, no Brasil falamos de 40 a 50%.
Partindo de uma posição de destaque antes da pandemia, onde seríamos um dos principais mercados recetores de turistas europeus, brasileiros e em crescimento no mercado americano, será fácil recuperar este estatuto?
Tenho um mix de feelings relativamente a esta questão.
Por um lado, seria aparentemente fácil, no sentido de que o nosso produto e aquilo que foram os argumentos para que as pessoas nos visitassem – seja o clima, as paisagens, cultura, gastronomia, monumentos, história – permanecem válidos. Nada disto se perdeu.
Por outro lado, gerou-se uma perturbação muito grande no transporte aéreo. Todas as companhias se reestruturaram, todas fizeram genericamente downsizing, não nos permitindo ter uma visão muito clara sobre qual o mapa aéreo de ligações depois disto.
Isto pode dar novos planeamentos de rotas, pode fazer surgir destinos que até aqui não tinham procura. O que se espera é que venham a existir menos rotas aéreas. É uma área com muitas incógnitas, não sei com que voos é que Portugal vai ficar. Se ficarmos com menos voos, que é muito provável que aconteça nos tempos mais próximos, por isso as previsões da IATA apontam cenários para 2023/2024, pois a questão não é diretamente motivada pelos efeitos diretos da pandemia, mas sim a desmobilização que aconteceu ao nível das companhias aéreas. Se temos uma TAP que está a encolher, há rotas que vão ficar pelo caminho. Ainda não me disseram quais e isso é que eu gostava de saber. Aliás essa deveria ter sido a primeira coisa a ser definida no âmbito da TAP. Quando se fala em plano de reestruturação temos que assumir primeiro o que queremos vir a ser e depois implantar a estratégia. Isso deixa-me incógnitas relativamente ao futuro.
Apesar da atividade económica do turismo nacional ser baseada no setor privado, o Governo tem um papel fundamental na sua alavancagem. Seja por via do financiamento, construção de infraestruturas, políticas específicas – por exemplo, relativamente ao transporte aéreo, entre outros. Este papel está a ser assumido pelo Governo em toda a sua amplitude? Onde se espera uma maior objetividade ou ação por parte do Governo nos próximos meses?
Há quatro pontos onde é necessária uma intervenção do Governo.
O primeiro, a necessidade de uma estabilidade e clareza nas medidas a adotar perante a pandemia, pois algumas serão mantidas.
Segundo, vão ter que sair medidas específicas para o setor de apoio às empresas, seja através de linhas de crédito adicionais, através do Banco de Fomento, em modelos de facilitar a renegociação das moratórias, que foi o modelo adotado dando o Estado uma garantia adicional ao banco. Mas eventualmente algumas medidas que ainda não estão em cima da mesa, e que vão ser necessárias, de apoio ao pagamento dos salários, durante o período de inverno. Eu não gostaria que fosse o modelo de forçar a que as pessoas fiquem em casa e forçar o encerramento dos hotéis. Pois os modelos seguidos até agora dos apoios do Estado às empresas para pagamento dos salários, implicavam obrigatoriamente a redução dos períodos de trabalho. Faz sentido que as pessoas não percam os salários, não faz sentido que tenham que deixar de trabalhar. Se as pessoas estão a ganhar o seu salário por inteiro, não há lógica que estejam em casa, mesmo que não haja muito trabalho. É mau do ponto de vista psicológico, porque há a tendência a ficarem mais deprimidas; é mau do ponto de vista de trabalho e dos processos de aprendizagem, porque são dinâmicas que terão que voltar a ser ativadas. É bom que os modelos que venham a existir de apoio ao emprego e trabalho sejam modelos que não tenham a ver com a correlação do horário de trabalho. Pode ser um modelo mais simples, por exemplo, em função das quebras da faturação e do número de postos de trabalho.
O terceiro ponto está relacionado com a luta pelo mercado mundial de consumidores, aparentemente cheios de vontade de viajar, e Portugal vai ter que fazer alguma coisa. Vamos ter que fazer um esforço grande ao nível da promoção e comunicação novamente da nossa marca, atributos, dos produtos e destinos, para que sejamos escolha a partir do próximo ano. Este ano houve pessoas que ficaram mais uma vez nos seus territórios, devido à pandemia, mas em breve vão começar a planear as férias do próximo ano. Portugal não se pode atrasar muito mais no lançamento e no reforço da promoção do país, porque vai estar a disputar com todos os destinos do mundo, todos vão querer reconquistar as suas quotas de turistas. Nós que estávamos no TOP20, temos que ter um investimento e uma atitude de alguém que quer estar neste patamar e voltar a receber 20 ou 25 milhões de turistas.
Para isso, e é o quarto ponto, tem de garantir na sua atuação a estabilização do transporte aéreo em tudo o que tenha a ver com as infraestruturas aeroportuárias. Isso passa pela estabilização da TAP, por retomar os acordos e captação ou manutenção de rotas com as várias companhias aéreas e garantir também um funcionamento em condições quer dos serviços de handling, quer dos Serviços de Estrangeiros e Fronteiras. Estes foram dois serviços que em cima da pandemia andaram permanentemente destabilizados.
Vila Galé
Como encarou a Vila Galé este período de pandemia? Que fases foram ultrapassadas, qual a fase atual e a que se vai seguir?
Este foi um período de muitas oscilações, de muita imprevisibilidade, de indefinição sobre o que seria o futuro. Na prática, tivemos o primeiro ciclo o ano passado, no confinamento total, que nos apanhou de surpresa. No verão passado forçámos a abertura de quase todas as unidades convencidos de que as coisas não iriam andar para trás; a partir de meados de setembro somos surpreendidos com o primeiro retrocesso e, depois, um novo período de confinamento, que acabou por ser muito mais duro. Muito mais duro, porque foi muito extenso, porque provocou o encerramento de todas as unidades. Este foi um ano que entrámos com algum otimismo, mas em que se veio sempre a adiar a retoma do negócio e a ficar sempre aquém das expetativas. As nossas previsões apontariam para fazermos um ano um bom bocado já acima do ano passado. Não digo que vá ser pior do que o ano passado, será melhor, mas muito aquém de um ano normal. Se tivermos uma baliza de dizer que em 2020 face a 2019 caímos 70%, nós estamos a falar que este ano cairemos 50% face a 2020.
Neste momento, só não temos dois hotéis abertos, que é o Vila Galé Estoril, pois temos outras unidades abertas na mesma zona de influência, e o primeiro hotel do Douro, na Régua. Dos 27 temos 25 hotéis abertos. No Brasil está tudo aberto.
Temos alguns hotéis a chegarem a agosto com uma taxa de ocupação de um ano normal, mas depois temos os hotéis da costa de Lisboa e Porto num cenário desastroso, com ocupações que não chegam aos 20%.
Durante a pandemia, abrimos quatro novos hotéis, os que estavam planeados, em Alter, Serra da Estrela, Douro Vineyard e São Paulo, no Brasil. Estamos a avançar com a construção do empreendimento de Alagoas, que abrirá em meados do próximo ano. Estaremos a andar um pouco mais devagar do que seria normal, mas é o contexto que assim o determina.
Nos Açores, em Ponta Delgada, estamos à espera da conclusão do licenciamento de construção, que será a próxima unidade a arrancar.
Como foi gerir este “momento” em dois países? Foi mais difícil em Portugal ou no Brasil? Considera uma desvantagem ter investimentos em dois países ou o contrário, neste contexto?
Uma das razões quando se internacionaliza e se vai para outro país é a diminuição do risco das operações. Em todas as crises anteriores de natureza económico-financeira nunca as várias zonas do globo andaram ao mesmo tempo em crise, dava uma certa defesa esta aposta. Esta foi uma crise diferente, foi global. Embora, como há a diferença da sazonalidade, conseguimos fazer um bom verão no Brasil quando cá estávamos totalmente fechados, isso aconteceu em janeiro. Estas diferentes realidades, o que não deixa de ser um pouco confuso, ajudam a encarar este contexto.
Ao nível da organização da empresa que mudanças trouxe a pandemia, em termos de departamentos internos e recursos humanos?
Do ponto de vista de desenvolvimento de processos digitais, acelerámos muito. Aproveitámos este período para desenvolver novas ferramentas digitais, sejam elas de processos internos ou de interação com o cliente. Desenvolvemos muitos modelos de colaboração e formação online, coisa que até à data usávamos pouco. E, por via deste desenvolvimento de uma série de sessões colaborativas e de formação online, aproximámos muito as equipas de Portugal e do Brasil.
Do ponto de vista estrutural, não tivemos grandes alterações assinaladas.
Como está a saúde financeira do grupo? Ficou concluído o processo de recomposição acionista?
A saúde financeira ficou um pouco abalada, mas aguentámo-nos pois entrámos na crise com níveis de endividamento muito baixos. A recomposição acionista está em fase final, não parámos esse processo que estava em curso. No próximo ano, ficará tudo fechado.
Têm investimentos diretos fora da área de hotelaria e turismo. Tendo em conta o período que se passa, o grupo pode encarar aumentar os investimentos para além do core business principal, de forma a diversificar ainda mais as receitas?
Não. Apesar de continuarmos a nossa aposta nos vinhos e azeites. Durante a pandemia também nos correu bem, no Brasil, a venda de todos os apartamentos no empreendimento que VG Sun, no Cumbuco, mais de uma centena. Estamos ali também a comercializar lotes para moradias. No Brasil estamos a diversificar na parte imobiliária.
Pelos sinais que temos, não vemos nada que seja transformador do ponto de vista do turismo, ou seja, no sentido de Portugal deixar de ser apelativo ou ser o fim do turismo em Portugal.