Grande Entrevista: “Sem saber, provavelmente, fui escolhida no momento certo, mas só tento dar o meu melhor”

Numa altura de retomar a atividade turística em Portugal, e a nível europeu, Ambitur esteve à conversa com Rita Marques, engenheira de formação que abraçou o desafio de ser secretária de Estado do Turismo pouco antes da pandemia mudar tudo. A governante explicou-nos detalhadamente o novo Plano Reativar o Turismo – Construir o Futuro e garante que o setor continua unido e com uma “ambição desmedida” para continuar a receber bem os turistas. A entrevista foi publicada na edição 334 da Ambitur, de maio, e é agora transposta na sua totalidade aqui.

O Governo apresentou um plano de ação para reativar o turismo nacional. Qual a previsão para a sua implementação?
O Plano é importante porque estabelece medidas de curto, médio e longo prazo. É um plano de grande dimensão e de largo espectro. Tem medidas de curto prazo que estão mais relacionadas com as nossas empresas. Este plano é sustentado em quatro pilares: o primeiro relacionado com as nossas empresas; o segundo com a segurança, que precisa ainda de ser muito bem nutrido, acompanhado e monitorizado; e depois temos dois planos de mais médio e longo prazo, que tem de ver com gerar negócio e construir o futuro. Os dois primeiros pilares são de medidas de curto/curtíssimo prazo, estamos a falar de medidas de capitalização para as nossas empresas, medidas para que as nossas empresas possam gerir e digerir as moratórias bancárias. Ou seja, medidas que têm que ser necessariamente executadas até setembro no máximo. As outras medidas já são mais dilatadas ao longo do tempo e há muitas que serão trabalhadas, desde já, mas até 2027.

Os seis mil milhões serão afetos de que fontes financeiras? Como será repartido o seu uso?
A nossa ambição foi criar um plano muito ambicioso, identificámos várias fontes de financiamento. Entendemos que não fazia sentido o plano de reativação do turismo estar integrado no PRR porque o nosso setor não precisa de reformas estruturais. É um plano que vai buscar financiamento a várias fontes. Aos Programas Operacionais Temáticos, aos Programas Operacionais Regionais, ao Banco de Fomento e também às instituições financeiras, ao Turismo de Portugal. Estes seis mil milhões de euros têm várias fontes de financiamento sendo certo que os destinatários de grande parte, diria quase a totalidade destes montantes, são as empresas e os atores regionais, os grandes stakeholders do turismo nacional.

Qual a participação dos privados no desenho deste plano? Serão consensualizadas agora algumas medidas?
Este plano surge depois de uma exaustiva cooperação com a Confederação do Turismo de Portugal e com as associações do setor. O que fizemos durante este ano e pouco foi reunir sempre com empresas, associações e CTP, com duas grandes prioridades. A primeira foi saber que apoios temos de colocar para assegurar a tesouraria das nossas empresas, e aí tivemos intervenções como o Apoiar.pt ou o Adaptar, medidas que contabilizaram um total de apoios de 2,5 mil milhões de euros para o setor do turismo. Mas tivemos sempre uma segunda prioridade, a capacidade de as nossas empresas responderem à manutenção de postos de trabalho, saber como é que Portugal se quer posicionar quando chegar o dia tão desejado da retoma. Temos sempre estas duas agendas. Esta segunda agenda, felizmente, é agora corporizada neste plano de reinício da ativação do turismo. Nesta perspetiva, o plano corresponde às várias necessidades mas é verdade que há aqui medidas que têm de ser detalhadamente trabalhadas e já estamos a fazer essas reuniões.

Que análise faz da situação económica do tecido empresarial turístico nacional?
Vivemos tempos muito difíceis e ainda estamos a viver tempos muito desafiantes. É preciso dar nota que tivemos números extraordinários em 2019. As empresas estavam, grande parte delas, altamente capitalizadas, tinham rácios de autonomia financeira muito interessantes, que estavam em crescendo, mas nem tudo isso conseguiu responder à crise pandémica. Apesar do nosso tecido empresarial estar bem capacitado, nada compensa termos estado um ano e meio sem faturação. Houve aqui um grande esforço de todos para mantermos a capacidade produtiva das nossas empresas e os postos de trabalho.

E que vetores que mais a preocupam?
A animação noturna ainda está encerrada. Essa é uma área que nos suscita especial preocupação. Na organização de eventos, não temos ainda as condições sanitárias, nem outro país, para podermos desenvolver essa fileira do setor do turismo. Enfim, todas as áreas foram particularmente afetadas. Estamos a falar de uma redução de receita turística na ordem dos 60%. Tivemos uma queda brutal de sete mil milhões de euros em receita turística em 2020, face aos 18 mil milhões de 2019. Perdemos algumas empresas e alguns trabalhadores, ainda assim os números são ligeiramente melhores do que aquilo que estimávamos. O que significa que os apoios conseguiram, de alguma forma, estancar esta hemorragia da pandemia.

O plano divide-se em quatro tópicos – Apoiar Empresas, Fomentar Segurança, Gerar Negócio e Construir o Futuro. O primeiro incide em três linhas de crédito e na criação de um Programa de Mentoria e de uma Rede Integrada de Apoio ao Empresário. O que destacaria de essencial nestas vertentes?
O primeiro pilar de Apoio às Empresas tem duas componentes: uma vertente financeira e uma segunda mais ligada ao conhecimento. Na parte financeira, temos três grandes medidas que são há muito reclamadas pelo setor. Primeira medida, instrumento de capitalização, de modo a garantir que a deterioração dos capitais próprios das empresas possa ser corrigida, tendo em conta que estas empresas precisam de ver mais robustecidos os indicadores de cariz económico-financeiro. Estamos a apostar sobretudo em instrumentos híbridos de capital e quase capital, de dívida subordinada também, tendo em conta as regras que correm da Comissão Europeia do quadro temporário de auxílios de Estado. Ainda na parte financeira temos a questão das moratórias, e temos instrumentos específicos a ser desenhados para que as nossas empresas possam digerir esta questão. Estimamos que, no setor do turismo, tenhamos qualquer coisa como cinco mil milhões de euros em serviço de dívida utilizado pela nossa banca. Sabemos que parte das empresas terá condições para pagar esse serviço de dívida, mas outras tantas não terão condições para o fazer. Depois temos um terceiro tipo de medidas que tem que ver com Linhas de Crédito com Garantia Pública. Isto justifica os três mil milhões de euros que identificámos ao nível dos instrumentos financeiros.

Temos então a segunda dimensão, a capacitação. Temos aqui uma oportunidade de apostar na qualificação dos trabalhadores, como de resto fizemos, mas também do empresário. O nosso empresário tem competências mas entendemos que uma rede de mentoria, por exemplo, que está proposta no plano, ajudará a que possamos estar melhor preparados para continuarmos a ser um destino competitivo.

Que recursos próprios serão afetos ao Turismo de Portugal no Programa Mentoria?
No total, o Turismo de Portugal, com este plano de seis mil milhões de euros, assume um compromisso financeiro na ordem dos 420 milhões de euros. Na componente apoiar empresas, falamos de 300 mil euros, quer no programa de Mentoria, quer no Gabinete de Apoio ao Empresário.

O segundo tópico do Plano incide no Selo Clean & Safe, Programa Seamless Travel, Adaptar 2.0 e Health Passport. O que destacaria?
Gostava de dar conta de duas iniciativas que parecem importantes. Sobre o selo Safe & Clean, fomos o primeiro destino do mundo a tomar uma iniciativa desta natureza, que foi replicada por várias geografias. Neste âmbito, começámos a trabalhar com outras áreas (cultura, eventos) e foi um objeto de estudo internacionalmente. O nosso objetivo é continuar a manter o selo.

Outra nota que gostava de dar conta tem que ver com o Adaptar, que foi um programa importante que está previsto perpetuarmos, agora na sua versão 2.0, no sentido de este ajudar os empresários a continuarem a investir num serviço melhor e mais seguro.

Gerar Negócio – neste tópico pretende-se imprimir uma dinâmica a situações já existentes como o Programa VIP, Mobilidade Sustentável, IVAucher e portal VisitPortugal?
Portugal conseguiu preservar a capacidade das empresas em responder à procura. Nessa perspetiva, temos oferta instalada e em condições de responder à procura. Mas precisamos de ter a procura. Este pilar visa alavancar, angariar, dinamizar procura. O primeiro pilar visa garantir que a oferta está cá, o segundo visa garantir que o consumidor fique em segurança na escolha do destino, o terceiro visa angariar procura.

Sabemos que 90% daqueles que chegaram a Portugal em 2019 vieram por via aérea, por isso uma aposta clara na conetividade aérea. Sabemos também que, nunca deixando nós de comunicar durante esta pandemia, se afigura muito importante que continuemos a comunicar bem as nossas campanhas internacionais, que estão devidamente identificadas. Portugal irá também explorar ao máximo a presença internacional em feiras, apesar destas estarem a passar por uma fase de transformação. Identificamos aqui um conjunto de medidas programáticas que nos ajudarão, uma vez que a oferta está instalada e pode responder, garantir que a procura chega cá.

Reativar o turismo – Construir o Futuro é uma abordagem transversal ao setor do turismo nacional? Serão ferramentas que permitirão uma maior competitividade e do turismo nacional?
Seguramente que sim. Tivemos aqui várias preocupações, mas eu destacaria duas no pico da pandemia, em 2020, além das questões de segurança sanitária e da formação. A primeira foi continuar a comunicar com os clientes. Continuámos a ativar a marca de Portugal, com toda a seriedade que impunha uma pandemia. Uma segunda preocupação foi identificar a pandemia como uma oportunidade para acelerar determinados objetivos que já estavam vertidos na estratégia 2027, designadamente a sustentabilidade, seja ela económica, social ou ambiental. Daí que, em outubro, lançámos a consulta pública para a sustentabilidade e estimo que, dentro de alguns dias, estejamos em condições de apresentar o Plano para a Sustentabilidade, que será importante para todas as regiões e também para toda a fileira do setor. É um Plano que tem medidas programáticas que aportam justamente a nossa ambição de continuarmos a ser o destino mais competitivo do mundo, mas cumprindo todos os objetivos de desenvolvimento sustentável.

Qual o papel dos empresários face a estes instrumentos e “nova” política do turismo nacional?
Este é um setor que foi dizimado e continua extremamente ativo, resultado da sua resiliência e da sua ambição. É evidente que perdemos alguns empresários e trabalhadores, mas continuamos a ser um setor muito coeso e muito unido na sua ambição. Isso verifica-se facilmente, pois qualquer turista que vem a Portugal continua a ser bem recebido, com um sorriso atrás da máscara. Essa é uma imagem de marca que não se perdeu durante a pandemia.

O que eu espero dos empresários é aquilo que os empresários sempre conseguiram dar: uma criatividade imensa, uma ambição imensa, desmedida, e continuarem a receber e acolher bem. Da parte do Governo, cá estaremos para continuar a providenciar as condições para que assim continue a acontecer.

Qual o papel das Entidades Regionais nesta “nova” política do turismo nacional?
A governança no turismo está clara. Às Entidades Regionais compete estruturar o produto, qualificar o destino, podendo trabalhar com o Turismo de Portugal na promoção também dos destinos, seja a nível regional, nacional ou internacional. A colaboração tem sido inexcedível, tem havido uma excelente dinâmica das Entidades Regionais sempre em articulação com o Turismo de Portugal, de modo a podermos vender uma marca forte, una e coesa.

O Turismo de Portugal enquanto organismo público terá de ser reforçado em competências e capacidade técnica?
As competências do Turismo de Portugal estão muito claras, não vejo necessidade para alterá-las, sem prejuízo de algum ajuste pontual e casuístico que entendamos encetar. Devo confessar que tenho a sorte de trabalhar com a melhor equipa do mundo. Aliás somos o melhor destino do mundo, porque temos a melhor equipa do mundo. Falo do Turismo de Portugal mas também dos nossos empresários. Temos um dinamismo, uma ambição e um amor à camisola e ao próximo, e foi por essa razão que temos atingido os objetivos que nos temos vindo a propor. Eu dir-lhe-ia que não vejo especificamente nenhuma necessidade para alterar a missão do Turismo de Portugal, muito pelo contrário, tenhamos nós condições para perpetuar essa ambição e essa missão.

Como se encontra o dossier das negociações com os Casinos relativamente aos acordos de exploração e prorrogação dos contratos de concessão do jogo?
Em dezembro de 2020 foi entendido que não havia condições para lançar os procedimentos pré-contratuais para duas áreas de jogo, Figueira e Lisboa e Estoril. A situação pandémica assim aconselhou. Nessa perspetiva, foi decidido prorrogar os contratos de concessão por mais 12 meses em relação a essas duas áreas de jogo. Nesta altura, estamos a avaliar se existem condições para lançar o concurso ao fim destes 12 meses, em dezembro deste ano. Neste momento, existem mais razões para acreditar que não temos novamente condições para lançar esses procedimentos contratuais no final do ano

Qual a evolução do turismo nacional que considera mais plausível para este ano?
O turismo com origem no mercado nacional, no ano passado, correspondeu muito bem. Na verdade, apresentou métricas praticamente idênticas a 2019. Tivemos uma queda abrupta das receitas na ordem dos 60%, mas essa queda deveu-se essencialmente aos mercados internacionais, porque o mercado nacional respondeu praticamente em linha com a resposta dada em 2019. Creio que este ano a tendência será a mesma. E esta é também a razão pela qual lançamos estes estímulos de apoio ao consumo, designadamente o IVAucher.

A nível internacional, este será seguramente um ano melhor que 2020. Temos vindo a trabalhar, no quadro da Presidência Portuguesa do Conselho Europeu, no levantamento das restrições e na harmonização das regras de viagem. Temos vindo a progredir bem. Exemplo disso mesmo é o Certificado Europeu Covid-19. Temos boas perspetivas de em julho ter já este certificado operacional.. Para 2021 temos a expectativa de ficar acima de 2020, na ordem dos 20% a 30%. Infelizmente, ficaremos ainda muito longe dos valores de 2019.

Se recuarmos à sua nomeação como secretária de Estado do Turismo, como entendia o setor na altura?
Foi uma aprendizagem dolorosa e rápida. Tivemos uma pandemia, algo que só se vive de século a século, de 100 em 100 anos. Aquilo que distinguiu Portugal foi ser entendido como um destino altamente competitivo no que ao turismo diz respeito, ficou em 12º lugar, mostra bem o que conseguimos fazer com a pandemia. Conseguimos preservar parte da nossa oferta turística, sair bem posicionados, com uma liderança forte nos mercados internacionais, temos todos os ingredientes que refletem o trabalho árduo de anos e anos. O setor conseguiu reinventar-se ao longo dos anos, tendo crescido 50% nas suas receitas turísticas, em quatro anos, até 2019, passando a contribuir de uma forma fundamental para o PIB e exportações. Tudo isto fez com que este setor, perante uma pandemia, conseguisse responder.

Hoje, depois de uma lição violenta e rápida, estou confiante de que o que foi feito ao longo dos últimos anos foi fundamental para nos podermos posicionar nesta fase pós pandemia.

Quem é Rita Marques?
Quando assumi esta função, em 26 de outubro de 2019, foi-me pedido para respeitar o setor, todos aqueles que aqui trabalham, e que pudesse garantir que esse orgulho que todos tinham na altura pudesse ser redobrado, ampliado. Tentei, apesar da pandemia, que assim fosse, porque os nossos empresários continuam, grande parte deles, a ter orgulho no setor do turismo em Portugal. Apesar de muitas cicatrizes.

Sou uma pessoa ambiciosa. E ser ambicioso é simplesmente não ficarmos confinados no dia-a-dia, na espuma dos dias. É ficarmos contentes por, em 2019, termos tido receitas turísticas na ordem dos oito mil milhões de euros, mas pensar que, em 2020, se não tivesse havido a pandemia, poderíamos ir mais acima e continuarmo-nos a reinventar. A ambição é não estagnar na nossa determinação, na nossa visão.

Tento ser uma pessoa clara nas ideias que defendo, de modo a estarmos alinhados. Se não formos claros a passar a nossa mensagem, quando olharmos para trás já não temos ninguém a seguir-nos. Tento ser também realista, ter a noção das nossas limitações humanas, individuais e coletivas. A melhor forma de ultrapassar as limitações é conhecê-las.

Sou engenheira de formação, a minha área mais recente tem a ver com gestão financeira, capitalização das empresas, apoios financeiros às empresas, investimento direto estrangeiro, e toda a parte de investimento empresarial. Essas valências, à data de hoje, foram fundamentais para ler um balanço de uma empresa, uma demonstração de resultados e para perceber, olhando para o setor, onde tínhamos que apostar. Sem saber, provavelmente, fui escolhida no momento certo, mas só tento dar o meu melhor.

Este foi provavelmente o maior desafio que encarou no seu trajeto profissional. Sente que o Governo teve margem para apoiar este setor como queria ou necessitava?
O maior desafio é sempre aquele que está para vir. Tenho isso como máxima. Enquanto secretária de Estado do Turismo, debati-me sempre, no que toca ao setor do turismo, para reclamar sempre por mais, nos vários calendários da pandemia. Algumas vezes ganhei, outras, perdi. Se há setor em Portugal que tem um envelope de seis mil milhões de euros é o turismo. Devemos estar todos orgulhosos porque isso foi resultado de um trabalho individual mas também conjunto. Sinto que tive sempre resposta por parte dos meus pares, do Ministro da Economia, para poder apoiar o setor.