Grande Entrevista: “Vimos a oportunidade de trazer novamente a cidade para dentro do hotel”

Quatro irmãos empreendedores – Martim, Bernardo e Duarte D’Eça Leal, e Afonso Queiroz – arrancaram há oito anos com um projeto de hospitalidade criativa, o The Independente Collective. O Grande Entrevistado desta edição é Bernardo D’Eça Leal, regressado a Lisboa em 2019, depois de algum tempo a viver no Porto para acompanhar a evolução do primeiro projeto do grupo a Norte. No terraço do The Insólito, no topo de um palacete do século XIX, o empresário, que ocupa também o cargo de vice-presidente da Associação da Hotelaria de Portugal (AHP), falou sobre a importância de se dar espaço à inovação para que o setor possa ganhar e a aposta nos Recursos Humanos que merece ser reforçada.

O que o levou a ir estudar para a Warwick University, Inglaterra, e o que trouxe dessa experiência?
Foi uma das experiências que mais me marcou na vida. Já estava em Inglaterra desde os 16 anos, onde tinha ido fazer o bacharelato internacional (IB). Sempre achei difícil aos 16 anos escolher o que iria fazer para o resto da vida. Em Portugal há um enorme peso no sentido de que o que escolhermos, será o que faremos para sempre. É engraçado que dentro do grupo liderei sempre o departamento de Recursos Humanos e tentei sempre lutar um pouco contra isso, fruto da minha experiência de fora, de trazermos pessoas de áreas diferentes para a Hotelaria.

O IB aconteceu por acaso. O meu pai era arquiteto e desenvolvia planos de pormenor para resorts turísticos, e tinha muitos colegas de trabalho estrangeiros. Tinha um colega escocês cujos filhos tinham estudado numa escola em Oxford e tinham tido uma experiência fabulosa. Nós já tínhamos a sorte de ir, desde os 10 anos, todos os verões fazer as “summer schools” para complementar o Inglês da escola, e o meu pai perguntou-me se queria ir estudar para Inglaterra. Eu estava na mesma escola há 10 anos, os Salesianos do Estoril, mas como tinha o espírito de viajar muito, achei que seria uma boa ideia. Fui visitar a escola, a norte do centro histórico de Oxford, e adorei, pois não era uma escola tradicional, era liberal e autónoma. Esse passo foi logo uma experiência inacreditável. No 10º ano estava na área de Economia e ali obrigaram-me a fazer outras coisas: Ciências, Teoria do Conhecimento, que adorei e que obrigava ao debate de ideias e argumentos. Havia esse ensinamento logo desde cedo, de debater ideias e argumentar. Fiquei com grandes amigos dessa altura. São experiências marcantes. Depois de dois anos em Oxford, não fazia sentido voltar para uma universidade em Portugal. Assim, fiquei em Inglaterra, e fui para uma universidade pública, tirar Gestão. E foi novamente uma experiência incrível. Através do desporto, nomeadamente do futebol, que adorava, consegui entrar na cultura inglesa.

Resumindo, foi uma decisão que não foi muito pensada, mas eu tive sempre sorte pois as decisões que fui tomando ao longo da minha vida foram assim, vieram até mim e eu fui seguindo o caminho.

No seu currículo também se destaca a passagem, já cá em Portugal, pelo ISCTE, onde concluiu um mestrado em Finanças.
Sim, comecei por fazer um mestrado Executivo em Finanças Imobiliárias. Na altura, estava a trabalhar no desenvolvimento de um resort turístico na Costa Alentejana, o Costa Terra. Terminando a parte do mestrado Executivo, pensei que podia fazer mais algumas cadeiras e ficava com o mestrado em Finanças. Faltou-me a tese, admito que não tive paciência… (risos) O curso foi muito bom, dirigido pelo Rui Alpalhão, com professores fantásticos. Percebe-se que a educação está a evoluir muito em Portugal. E estou com imensa vontade de voltar a estudar.

Uma das séries que estou a ver agora é “Inside Bill’s Brain: Decoding Bill Gates”… É engraçado que ele todos os anos tirava várias semanas só para ler e pensar no seu refúgio. No dia-a-dia das empresas isso não se consegue e penso que as empresas portuguesas sofrem muito com isso. O nosso primeiro hostel teve um grau de pesquisa que nunca mais tivemos em nenhum, pois não tínhamos a operação a correr, portanto não tínhamos os problemas do dia-a-dia da operação, e tivemos meses e meses a debater tudo e mais alguma coisa. É das partes mais divertidas mas, a verdade, é que as empresas não têm tempo para fazer isso.

Em que altura entende que a inovação é o fator chave que tentará introduzir sempre nos negócios em que se envolve?
È o fator chave, sim. Temos que conseguir ter tempo para pensar sobre tudo, não só sobre um novo projeto ou conceito, mas sobre a forma como fazemos as coisas, como gerimos a operação… Acredito que há imenso espaço para inovação em várias componentes do negócio. Inovação não tem que ser só criar algo novo, pode ser aproveitar coisas que já estão bem feitas noutros setores e adaptá-las ao nosso. Olhar para coisas que são óbvias, que são feitas da mesma maneira há vários anos, é um bom lugar para começar a inovar. Dou um exemplo muito prático: a questão do “life-cycle” de uma estadia num hotel. Não me lembro de um check-out não ser até ao meio-dia e do check-in não ser às 15H. Porquê continuar a fazer as coisas assim quando as pessoas hoje em dia viajam de outra forma? As low-cost, por exemplo, têm voos muito cedo. Que outro serviço podemos dar, sem ser só deixar a mala, e conseguir que de alguma forma. por via tecnológica. se faça check-in mais cedo? Poderá ser uma oportunidade para as empresas de software ajudarem os hotéis a gerir melhor esta questão. Há imenso espaço para inovar.

Uma coisa boa de estar na AHP e nestes centros de discussão é podermos estar em fóruns onde estes temas são debatidos, como a questão da classificação dos hotéis. Porque é que um hotel de 5 estrelas tem que ter obrigatoriamente room service 24 horas, quando se calhar o meu cliente não precisa nem quer room service, talvez prefira chamar a uberEats. Agora há, por exemplo, a questão dos hotéis estarem a ser invadidos por uberEats porque os clientes querem: o que fazer, não deixar entrar ou receber de braços abertos e complementar este serviço? São desafios constantes e, se não pensarmos e até anteciparmos algumas destas questões… A inovação tem de ser constante. As pessoas que lideram os departamentos, não apenas os fundadores ou CEOs, têm que arranjar tempo para trazerem novas ideias. É isso que também os vai ajudar a crescer. Tem de haver essa ambição de querer crescer dentro da empresa e só mostrando inovação e trazendo mais-valias para o negócio é que isso é possível.

 

Como surge a oportunidade de investir em família numa unidade hoteleira? É um exemplo de que a palavra «crise» pode ser substituída por «desafio»?
Fomos das primeiras pessoas a aproveitar a oportunidade do Alojamento Local que, para mim, foi fundamental. Por isso sou bastante crítico das pessoas que o criticam. O Alojamento Local foi essencial devido à questão da classificação e do quanto isso limitou a inovação e a disrupção na hotelaria. A questão da classificação e a tipologia já nos diziam o que o produto ia ser, limitando imenso a capacidade criativa e de inovação.

O Alojamento Local não, pois não tinha praticamente limitações, apenas questões muito básicas de segurança, higiene e segurança alimentar… E depois a questão do RGEU, relacionada com a arquitetura e urbanismo.

A verdade é que viram-se alojamentos locais a chegarem aos preços dos hotéis de quatro e cinco estrelas, porque inovaram, porque não tinham que ter o room service, não tinham que ter o restaurante aberto por «x» horas, podiam ter uma série de serviços nos quais investiam, como por exemplo, um curador que traz uma série de experiências e consegue ter tempo para investigar sobre os clientes mais importantes da unidade. Consigo oferecer a esse cliente uma série de serviços, antes mesmo dele chegar, sem os custos operacionais de um hotel de quatro ou cinco estrelas.

A questão do Alojamento Local para nós foi fundamental. Viemos um pouco dos resorts, do turismo imobiliário. A experiência do meu irmão Martim, que é o investidor principal no The Independente Collective, era totalmente na reabilitação urbana e promoção imobiliária pura. Mas vínhamos com esta mente e versatilidade.

Estando livres de seguir um conjunto de normas, conseguimos inovar mais e mais rapidamente, e esta capacidade de resposta acelerada é essencial, não só para os Alojamentos Locais como para os hotéis. A comunidade hoteleira necessita de pensar numa simplificação dos requisitos para os hotéis de quatro ou cinco estrelas e de abraçar novos conceitos e mesmo novos parceiros.

Com o The Independente Hostel juntou alojamento e restauração (The Decadente). Qual era o vosso objetivo inicial?
O nosso objetivo principal era abrir o hostel à cidade. Um conjunto de rotinas sociais que tinham sido criadas pelos hotéis nos anos 20 a 40, e cujo grande exemplo em Portugal eram o Ritz e o Tivoli, de que a vida social girava à volta dos hotéis de 4 e 5 estrelas, marcos icónicos da cidade. Havia uma ligação enorme entre o hotel e a cidade, e os conceitos de restauração e bar eram abertos e tinham uma vivência enorme da comunidade local. Era também uma forma da comunidade local ver alguma inovação, de partilhar tempo com outras pessoas de fora do país, abrindo a cabeça sem viajar. E nós fomos beber disso. Essa tradição tinha morrido por completo nos anos 70 e 80. As pessoas deixaram de ir para os hotéis porque estes pararam um pouco no tempo ao nível da oferta que tinham dos restaurantes e bares. Começaram a abrir coisas divertidas a nível da restauração de bairro e rua. Os hotéis começaram a ter menos clientes, começaram a investir menos ainda, e mais obsoletos ficaram. Nós vimos a oportunidade de trazer novamente a cidade para dentro do hotel. E também sabíamos que os hosteleiros não iam ser o nosso principal consumidor e que tínhamos de virar a carta, a gastronomia e os preços, numa altura de crise, para os lisboetas.

A questão do pensar, e perceber como vamos inovar e perceber quem vai ser o nosso consumidor final e como vai viver a experiência tem resultados, e aqui resultou muito bem. Os lisboetas aderiram, vieram para dentro do hostel. E para quem está hospedado é uma experiência fantástica pois está com locais, o que valida o próprio destino e o conceito.

Ao longo do seu percurso, qual foi o momento mais desafiante?
Desafiante foi abrir o primeiro. O Alojamento Local permitia, de uma forma muito célere, pensarmos um produto, chegar ao mercado rapidamente e testá-lo. Pegámos numa Guest House de sete quartos, que não tinha uma viabilidade gigantesca do ponto de vista económico. Não tínhamos a ambição de ser um grupo hoteleiro, mas sim de ter algo com alguma dimensão que nos permitisse que as pessoas pudessem fazer carreira. A questão da escala estava relacionada com poder haver planos de carreira, é um fator de motivação das pessoas. Embora mesmo tendo isso continua a ser dificílimo motivar as pessoas e os jovens, não temos uma fórmula mágica. Esta era então uma casa de um avô nosso, Olavo D’Eça Leal, um homem de várias artes, muito decadente no bom sentido da palavra, boémio. A casa tinha ficado semiabandonada durante alguns anos e sempre tínhamos pensado em recuperá-la e fazer uma Fundação. Pensámos depois em criar alguns quartos, em que as pessoas pudessem conhecer melhor quem era o nosso avô, e trazer receitas para a Fundação. Cada quarto era uma ala do museu dele. Chamava-se The House of The She-Pine-Tree, a Casa da Pinheira, porque ali havia uma pinheira gigante. Sempre adorámos a questão do anti marketing, de termos um nome grande. Queríamos ser diferentes, marcar uma posição. Correu lindamente este primeiro projeto, que abriu em 2009. A casa era numa aldeia, o Sabugo, em Sintra. A Booking.com começava a dar os primeiros passos em Portugal, e não havia quase hotéis em Sintra na altura na Booking, que utilizava um algoritmo por raio. Nós estávamos em linha reta a 12 Km do centro de Sintra, embora fossem 18 km para lá chegar que demoravam meia hora. Aparecíamos na primeira página porque quase ninguém estava na Booking, muito menos guest houses e alojamentos locais. Ganhámos imensos clientes.

Agora estamos a tentar dar o salto para hotéis porque já não podemos fazer mais alojamentos locais. Não é por questões de preço, ou porque nos aburguesámos. Vamos estar imensamente limitados em algumas coisas. A ideia é que a nova unidade na Rua de São Paulo seja uma grande surpresa, mas a classificação vai chocar um pouco os hoteleiros. Vai ser outra vez disruptivo e brincar com imensas questões de anti marketing. Abre em 2020.

Qual o portfolio ativo do grupo e que projetos tem em pipeline?
Os projetos que temos hoje abertos são estes dois edifícios, que tratamos como um: The Independente com a oferta de dois restaurantes – The Decadente e The Insólito. Temos depois The Indy House, na Mouraria, um alojamento local sem oferta de B&V todos os dias ao público embora com um espaço de eventos, The Favela. Este é o projeto mais recente. Antes desse abrimos o The House of Sandeman Hostel & Suites, em Vila Nova de Gaia, em parceria com a Sogrape.

Em pipeline temos o nosso primeiro hotel, em Lisboa, na Rua de São Paulo. Está em discussão uma unidade de turismo de habitação em Évora. Em Tavira temos em licenciamento um projeto para hotel, e na Comporta também teremos mais um hotel. Penso que Lisboa tem ainda imensas oportunidades de crescimento, noutras zonas como Ajuda, Bairro das Colónias, Marvila, Beato… O Porto, como um centro histórico muito mais limitado, e prédios muito mais pequenos, bem como muita gente interessada, está mais difícil. Mas é um destino muito apetecível.

Como vê o grupo daqui a 10 anos?
Gostava de conseguir trazer mais inovação na forma como gerimos os Recursos Humanos. Acho que vai ser um fator fundamental na forma de motivarmos as pessoas que estão connosco e de conseguirmos recrutar mais pessoas. É muito difícil, porque as margens dos grupos que trabalham na hotelaria são muito pequenas. Mas temos que conseguir inovar na forma como operamos as unidades, na forma como as concebemos, para conseguirmos algumas poupanças no número de pessoas mas podermos oferecer mais às pessoas, não só a nível salarial. Adorava, por exemplo, oferecer algum tipo de apoio às pessoas com filhos. Há caminho para uma otimização nos hotéis. E as questões tecnológicas podem trazer melhorias nesse aspeto.

Como seria o hostel/hotel dos seus sonhos?
Para mim, mais do que os amenities que estão dentro do espaço, a questão do destino, a forma como o operador conseguiu beber e perceber o destino, e fazer com que a unidade faça parte desse destino, e que o cliente consiga viver o destino já a partir dessa unidade, é fundamental. E depois o sonho de ter um concierge dedicado, um curador que consiga fazer um estudo dos clientes antes deles chegarem ao hotel. Se no The Independente Collective conseguíssemos oferecer isso no nosso próximo projeto, ou mesmo neste, esse seria um sonho concretizado.