O vinho ao Centro

Decorria ainda o afã das vindimas quando o Turismo do Centro levou um grupo de jornalistas a conhecer as rotas do vinho no Centro de Portugal. Uma vasta região que começa nas terras altas da Beira Interior, passa pelo Dão, desce à Bairrada, espraia-se pelo Tejo e vem desaguar às portas de Lisboa.

Desde os anos 90 que José Madeira Afonso divide o tempo entre Coimbra, onde exerce medicina, e as vinhas de Souropires, em Pinhel, herança da família. É ali que, privilegiando as castas da região, a Fonte Cal e a Síria nas brancas, e o Rufete e a Touriga Nacional, nas tintas, produz o Casas Altas.

Estava-se em plena vindima quando visitamos “as vinhas do doutor”, como são conhecidas localmente. São vinhas de altitude, submetidas a invernos frios e verões muito quentes e secos, de onde saem vinhos que são a real expressão da terra.

Juntando as sub-regiões de Castelo Rodrigo, Cova da Beira e Pinhel, a Beira Interior acabou de lançar a sua Rota de Vinhos, aliando o vinho e a gastronomia à valorização do património natural e cultural para fazer crescer o turismo. Do seu lado tem a grande vantagem de ter 11 das 12 Aldeias Históricas dentro da região (Piódão é a exceção).

No bonito anfiteatro do Solar dos Vinhos da Beira Interior, na Guarda, Rodolfo Baldaia de Queirós, presidente da CVR Beira Interior há quase dois anos, deu-nos a provar os vinhos da região, nascidos de solos graníticos. Recém regressado de uma feira em Berlim, exalta a diversidade de castas, o carácter exclusivo de algumas, e o vinho que ali se faz como “expoente da cultura, das raízes e da tradição beirãs”.

Volta a reforçar o que já nos tinha dito no jantar na noite anterior, no restaurante A Colmeia: “Não gosto nada do discurso do coitadinho, aqui esquecido no interior. Não, o que queremos é valorizar a nossa rota de vinhos como um veículo para criar emprego e trazer riqueza à região”. Uma região com particularidades que a tornam única. Como os invernos frios, o clima seco, com baixa humidade relativa, condições ótimas para a produção do vinho biológico.

A Quinta do Cardo é porventura o exemplo mais conhecido, mas há outros e também quem pondere a curto prazo começar a fazê-lo, como a Quinta dos Termos, por exemplo, seguindo uma tendência crescente, sobretudo no norte da Europa. Um novo site, o concurso Beira Interior Gourmet e a candidatura da Guarda a Capital Europeia da Cultura 2027 são tudo ferramentas apontadas ao crescimento do turismo.

Da Guarda para Viseu, sede dos vinhos do Dão, é apenas uma hora de carro mas a distância na sustentação da sua rota de vinhos é bem maior. Não surpreende, a Região do Dão – região-berço na Touriga Nacional, como se lê nas paredes do Solar – foi demarcada em 1908 e é a 2ª região mais antiga de Portugal (a seguir ao Douro). Tem agora 160 produtores certificados embora apenas 45 aderentes à Rota dos Vinhos do Dão.

O Solar do Vinho do Dão, a antiga residência dos bispos de Viseu, funciona como um welcome center que dá a conhecer um pouco da história e curiosidades em volta do vinho, mas ali prefere-se encaminhar os turistas para as quintas para uma experiência mais verdadeira.

Para uma experiência real e um vislumbre dos novos caminhos do Dão, visitamos a Quinta de Teixuga e a Adega Caminhos Cruzados, às portas de Nelas. O arrojo arquitetónico da adega e a irreverência da juventude de Lígia Santos – que deixou o escritório de advocacia em Lisboa para dar a cara pelo projeto – deixam perceber porque se intitulam “o novo Dão”.

A adega e as vinhas estão envolvidas pelo pinhal e emolduradas pelas serras da Estrela, Caramulo e Buçaco. Aqui o destaque vai para o Encruzado, a casta mais distintiva do Dão, uma casta branca com grande capacidade de envelhecimento, como comprova a colheita de 2015, com estágio prolongado e cor de madeira.

O Jaen, o Alfrocheiro, Chardonnay e Semillon são outras castas em que apostaram, tal como, claro, a Touriga Nacional, do qual fazem um rosé, um vinho que tem vindo a crescer, “apesar do estigma de ser um vinho de senhora”, diz Ligia Santos.

O enoturismo não se faz sem boas unidades de alojamento que suportem a procura. Ali perto, em Penalva do Castelo, a Casa da Ínsua leva-nos diretamente para o século XVIII para uma visita pela história de Portugal e do Brasil, através do legado de Luís de Albuquerque de Melo Pereira e Cáceres, ex-Governador e Capitão-General de Cuiabá e Mato Grosso. É o único hotel português a integrar a prestigiada rede espanhola de Paradores de Turismo e merece uma visita por si só.
Para integrar toda a oferta e apresentar a região vitivinícola como destino, surgiu a Associação Espaço Bairrada, que pode ser um bom ponto de partida para a região. A antiga estação de comboio da Cúria – desenhada em 1944 pelo arquiteto Cotinelli Telmo para receber os visitantes endinheirados que frequentavam as termas – foi impecavelmente conservada e decorada para dar as boas-vindas a quem chega à Bairrada.

Com 38 associados, 25 com enoturismo, a associação lançou o Guia de Enoturismo 2020, disponível online, que ajuda a escolher a experiência que queremos. Embaixador por excelência da Bairrada, Luís Pato recebeu-nos na adega na Amoreira da Gândara para nos dizer o que tem vindo a afirmar (e a fazer) há décadas: “A nossa missão é a Bairrada. Queremos fazer o máximo com as castas autóctones”.

Com a vinha a apenas 20 quilómetros do mar, a influência atlântica é marcada. A grande amplitude térmica dá frescura e acidez, e “é fácil fazer brancos e espumantes”, diz. Inovador desde os anos 80, apostou na monocasta focando-se nas uvas Bical, Maria Gomes, Cercial e Cercialinho. Já nos tintos a história é outra. A uva-rainha aqui é a Baga, e são vinhos que se podem guardar por muitas décadas, como os de 1988 que vimos na sua garrafeira – “São vinhos de terroir. Baga é assim. Bairrada é assim”.

Fez o primeiro espumante branco de baga sem sulfuroso em Portugal e diz que o que fazem são espumantes gastronómicos. As provas são muito educativas e se há hora para começar, para acabar já não é bem assim. “Vender vinho é contar histórias. Contar as histórias de porque é que os vinhos são tão diferentes, porque é que temos tantos rótulos”, diz Luís Pato.

A pouco mais de 10 km estão as Caves de São Domingos na Anadia. No negócio dos espumantes, vinhos e aguardentes desde 1937, as Caves são históricas. Escavadas na rocha, a 12 metros da superfície, guardam milhões de garrafas em estágio, em atmosfera protegida, como comprovam as teias de aranha, fungos, humidade e as estalactites penduradas do teto.

Com 100 hectares de vinha na Bairrada, as Caves de São Domingos assumiram o compromisso de a partir de 2020 não ter mais produtos não certificados. Bairrada é sinónimo de leitão e também não faltou num almoço na majestosa sala Baga. Tudo isto pode ser experimentado nos vários programas de visitas, provas e menus de degustação.

Para conhecer os Vinhos do Tejo, rumamos a Tomar, um dos 21 concelhos que compõem a Região. O alojamento foi no novíssimo Hotel República, situado na praça da cidade, mas foi à mesa no restaurante Sabor da Pedra, com uma vista panorâmica sobre a Barragem de Castelo de Bode, que pudemos degustar alguns exemplos destes vinhos marcados pelo rio que lhes dá o nome e lhes define o perfil. A casta rainha é a Fernão Pires, combinada com castas autóctones (como Arinto ou Verdelho), e outras estrangeiras, como a Riesling ou a Chardonnay, resultando em brancos frutados e frescos.

Do Tejo para Lisboa é um pulo e foi debaixo de chuva forte que fomos conhecer o projeto da Casa Romana Vini, que foi buscar o nome à via romana que ligava Lisboa a Óbidos, e reúne vinho e alojamento em Alguber, Cadaval. Numa quinta onde predomina a influência marítima e os nevoeiros matinais, António Barreira apostou no Pinot Noir, à semelhança do que se faz na Borgonha.

Em 2018 introduziu o Semillon “para satisfazer o gosto e a procura pelas castas estrangeiras, sem esquecer as autóctones”, como o Arinto, Encruzado, Alvarinho ou a Touriga Nacional. Em agosto de 2019 começou a produção biológica e é para aí que vai evoluir, usando enxofre e cobre em vez de pesticidas. “O biológico em clima húmido é mais complicado mas para já não estou arrependido”, refere.

A Região de Lisboa tem nove denominações de origem: Colares, Carcavelos, Bucelas, Alenquer, Arruda, Torres Vedras, Lourinhã, Óbidos e Encostas d’Aire. “Há muitos pequenos produtores, temos 126 produtores com vinhos no mercado. A região exporta 80% a cada ano”, diz o presidente da CVR Lisboa, Francisco Toscano Rico.

Claro que 2020 é um ano completamente atípico, também para os vinhos. Houve um aumento do consumo doméstico mas a diminuição foi muito acentuada na restauração. Feita a vindima, resta confiar que a capacidade de evolução na garrafa seja boa.