Opinião: “Vai ficar tudo melhor?”

Por Filipe Santiago, Managing Partner – Consulting da BlueShift*

Do nunca visto
Com mês e meio de confinamento generalizado e a segunda quinzena de estado de emergência a meio, começamos agora a discutir o regresso progressivo à normalidade. Estamos no reino do nunca visto. E por isso não sabemos exatamente o que aí vem. Se conseguiremos manter o “planalto” num cenário de abertura condicionada ou se voltaremos a correr para casa ao fim de quinze dias; se teremos vacina em outubro, em janeiro ou em abril; como se vai comportar o consumidor neste cenário sem precedentes; e o que farão, em particular, turistas e viajantes. Isto é para dizer o óbvio: enquanto comentador encontro-me aquém da futurologia, mas bastante para além do conforto com que abordo temas mais amadurecidos.

Não há novo normal
Um dos chavões do momento é o clássico “nada será como dantes”, ou “estamos a caminho de um novo normal”. Frases bonitas, mas, na minha perspetiva, um pouco gastas. Em 2001 também todos achámos que o 11 de Setembro ia mudar radicalmente as nossas vidas, particularmente o turismo. Não mudou. Ou melhor, mudaram alguns hábitos e práticas, veio uma crise económica, mas a prazo manteve-se a tendência que vinha de trás: nunca se viajou tanto.

Acredito que não é possível fazer uma análise coerente sem perspetivar três momentos diferentes.

O primeiro deverá começar já em maio e é, de facto, terreno novo. Será caracterizado por grandes ajustamentos operacionais nos hotéis e restante oferta turística para minimizar riscos e dar segurança a clientes e hóspedes. Acredito que será uma retoma tímida e algo esquizofrénica, com os viajantes divididos entre a necessidade de evasão e a gestão da ansiedade, e os hotéis hesitantes entre a ânsia de retomarem a atividade e o receio de não terem procura para cobrir os custos de setup.

O segundo momento surge após a vacina e/ ou tratamento e corresponde à normalização dos hábitos dos consumidores a todos os níveis. Contudo, ao desbloqueio sanitário e ao alívio do regresso à normalidade irá contrapor-se o peso de uma inevitável crise económica, com recessão e uma recuperação que já ninguém acredita ser rápida, certamente agravada por uma nova crise de dívida. Aqui nada de novo, é o clássico ciclo económico que já conhecemos, mas gostamos de esquecer.

O terceiro momento é o das boas notícias, e também não sabemos a que distância está. É o regresso ao crescimento económico. No fundo, a próxima mudança de ciclo.

O turismo na tempestade
As próximas fases serão muito duras para o turismo. Economia débil, desemprego alto, rendimentos ameaçados. Companhias aéreas em dificuldade, algumas nacionalizadas, outras despenhadas de vez, e hotéis a pagarem o preço de saltarem diretamente do inverno 2019 para o inverno 2020, com o lastro de mais de um ano em défice operacional. Alguns não abrirão em maio, outros cairão mais à frente. Mas acredito que a maioria conseguirá, com esforço e uma ajuda da banca e outros stakeholders, recuperar pouco a pouco até à normalidade. Estarão particularmente vulneráveis os mais alavancados e os menos eficientes. Muitos descobrirão que não se fazem investimentos a 30 anos sem levar em conta o ciclo económico.

Nem tudo é mau, muito é bom
O cenário de médio prazo não parece, assim, muito diferente daquele que encontrámos em 2009-2012. No entanto, há duas diferenças importantes. A primeira é que a apetência por ativos turísticos portugueses nunca foi tão alta. Muitas transações deixaram de se fazer, nos últimos anos, pelas elevadas expetativas de valor de quem vendia, e o choque de realidade poderá facilitar a mudança de mãos e a perspetiva de uma nova vida para essas unidades. A segunda razão é que a banca aprendeu muito com a crise anterior, e hoje já é capaz de encontrar soluções rápidas e efetivas para os seus “distressed assets”, evitando a sua manutenção em suporte mínimo de vida e consequente contaminação do mercado.

Em suma, passados estes dias difíceis, e não desconsiderando todos os dramas humanos que há a lamentar em qualquer crise, é bem provável que emerja um setor hoteleiro mais forte: mais consolidado, mais profissional, mais competitivo. Mais internacional também, sem dúvida. Mas isso já sabemos que é uma inevitabilidade num país sem capital nem particular ímpeto reformista.

*A opinião foi solicitada pela Ambitur.pt no contexto da atual crise provocada pela pandemia da Covid-19 no setor do turismo.