Os recursos humanos são o principal desafio que temos para dar resposta”

Foi com um sorriso nos lábios que Ana Mendes Godinho recebeu a Ambitur para mais uma Grande Entrevista no Ministério da Economia, no meio de uma sempre preenchida agenda de viagens e eventos que resume o seu dia-a-dia. Confessamente apaixonada pelo que faz, a atual secretária de Estado do Turismo recuou no tempo até à sua infância, por Lisboa, recordou os tempos da Faculdade de Direito, onde se licenciou, e garante ter assumido a 100% a defesa do serviço público neste seu cargo. Sobre o setor salienta a criatividade e a resiliência dos seus profissionais e afirma estar a lutar pela valorização dos recursos humanos nesta indústria, “o nosso ativo mais valioso”.

Olhando para os números aparentemente tudo vai bem no Turismo nacional. No entanto, quais os desafios que tem pela frente?
Não posso negar que a atividade turística tem tido um comportamento muito positivo, quer em termos de evolução de receitas turísticas, quer em termos de desconcentração da procura ao longo do território, porque estamos com os maiores crescimentos em termos percentuais nas regiões tradicionalmente menos turísticas; estamos a conseguir alargar a atividade turística a mais meses e isso é notório em determinadas regiões, nomeadamente no Algarve, em Lisboa e no Porto. Na Madeira isso já era uma realidade. Um elemento que resulta de todos estes, e que é aliás aquele pelo qual luto mais, e aquele que move o turismo, a criação de emprego, esse também tido números muito positivos. E principalmente criação de emprego estável. A nossa preocupação tem sido sempre, mesmo na questão do alargamento da atividade ao longo do ano, garantir que há uma atividade economicamente sustentável que também consegue ter emprego sustentável e de qualidade, e duradouro ao longo do ano. Mesmo em termos de percentagem dos contratos a termo face contratos por tempo indeterminado, também estamos a evoluir muito positivamente. Também aí há um caminho que se começa a fazer. Começa a ser cada vez mais a própria oferta hoteleira, de restauração e animação turística a sentir a necessidade de ter gente qualificada e percebe que para isso só se tiver condições contratuais estáveis senão as pessoas também não aderem ao projeto. É muito interessante ver esta mudança na valorização que cada vez mais as empresas estão a dar aos seus quadros porque percebem que é um bem muito precioso.

Dito isto, há muita coisa por fazer. Há imenso a fazer em termos de valorização das pessoas que trabalham no turismo. É um processo que está a acontecer porque esta necessidade da nossa oferta ter gente cada vez mais qualificada para garantir a qualidade do serviço obriga a isto, a um movimento de valorização e a dar melhores condições a quem trabalha para garantir que se consegue reter os melhores.

Mas ainda há muito a fazer, nomeadamente a nível da formação. Acredito que quanto mais as pessoas forem qualificadas e especializadas no turismo mais se tornam indispensáveis para as empresas. Esse é um caminho de valorização para que as pessoas ganhem mais, tenham melhores condições e tenham uma relação de maior confiança entre empresa – unidade de negócio – trabalhadores. Portanto aqui um grande desafio a nível da formação. Tivemos uma entrada no mercado de trabalho do turismo no último ano e meio de cerca de 60 mil pessoas. Se pensarmos que as escolas de turismo têm três mil pessoas por ano percebemos o gap que existe e temos que trabalhar entre todos – todas as escolas profissionais, os politécnicos, as universidades – e ter um plano intensivo de formação para conseguir chegar a estas pessoas de uma forma diferente. Uma aposta cada vez mais na formação “on job”. Temos também aqui as escolas de turismo a saírem para fora, para fazer formação nos locais de trabalho. Também é um exercício exigente que implica alguma adaptação e esforço mas que é o caminho para conseguirmos chegar a mais pessoas, nomeadamente aquelas que já estão no mercado de trabalho e para que elas se qualifiquem mais e se tornem mais indispensáveis nos locais de trabalho.

 

Os recursos humanos são a pedra-chave do turismo nacional?
Os Recursos Humanos são o principal desafio que temos para dar resposta mas, ao mesmo tempo, são o ativo mais valioso que temos. Este é um dos grandes desafios que temos. Muitas vezes as próprias regiões que queremos que se afirmem cada vez mais turisticamente têm um défice enorme de pessoas qualificadas em termos de turismo. É um exercício muito exigente que estamos a tentar fazer, através da criação de programas de formação intensivos, nomeadamente até de formação de desempregados para que sejam aproveitados e que possam ser um instrumento útil para o turismo.

Outro desafio fundamental é a questão da sustentabilidade, nas duas dimensões que assumimos na ET27 como metas: a dimensão social e a ambiental. Sabemos que os temas da sobrecarga vão estar na ordem do dia, sabemos que nos destinos que andaram à nossa frente durante alguns anos já estão a ter problemas que nós ainda não temos mas que temos que garantir que não os vamos ter; portanto gerir esta compatibilização da atividade turística entre a procura turística e as populações residentes, garantindo que o turismo traz cada vez mais valor e se incorpora na própria comunidade para que esta fique satisfeita com a procura de turistas que tem. A questão da sustentabilidade ambiental porque é o futuro. Não há dúvida que os destinos ambientalmente e socialmente sustentáveis serão aqueles que vão ser mais procurados no futuro. Não tenho dúvidas que as gerações mais novas serão completamente exigentes até na seleção dos seus destinos no sentido de perceber se aqueles destinos se revêm na sua forma de vida, uma forma de vida cada vez mais relacionada com o território, o planeta, o ambiente, os recursos finitos. E portanto os destinos têm de se afirmar por aí.

Esses são os grandes desafios porque são desafios com os quais não estávamos habituados a estar preocupados. É virar o chip das preocupações que tradicionalmente a indústria do turismo tinha. É inovar e garantir que criamos instrumentos mas também somos parceiros uns dos outros para encontrar soluções e trabalhar em conjunto para nos afirmarmos como destino Portugal mas destinos regionais quer social quer ambientalmente sustentáveis.

 

No seu entender onde termina a área de atuação dos privados na economia do turismo e se inicia a das entidades públicas?
No turismo o papel de intervenção pública é fundamental. Porque temos várias áreas que dependem das organizações públicas, quer em termos de recursos de ordenamento do território, de recursos de mobilidade, de transportes públicos, a questão da saúde, da segurança, do controlo do espaço aéreo, dos próprios portos e aeroportos. Há uma série de áreas de competência iminentemente pública que têm imensa influência no desenvolvimento da atividade turística. Tem que haver uma grande capacidade de mobilização dos atores públicos para gerirem estas suas áreas de competência tendo sempre a preocupação do impacto que têm e não têm no turismo. O papel de quem está no lugar de assumir a pasta pública do Turismo tem que ter esta grande preocupação de transformar todos os outros membros do Governo em ministros e secretários de Estado do Turismo. É assumir que no Turismo todas as áreas de competência têm de se assumir que são os promotores do turismo. Acho que se tem conseguido muito isto neste Governo. Aliás é uma das facetas mais interessantes, o grande trabalho de equipa que tem havido entre os vários ministérios para garantir que há sempre uma porta aberta e encontrarmos soluções integradas e não setoriais, muito ligado a um Primeiro-ministro que tem uma experiência de uma câmara onde o turismo fez toda a diferença numa década, mudou completamente a cidade, um Primeiro-Ministro que tem bem a noção da importância que o turismo tem no modelo de desenvolvimento do país.

 

Ou seja, face a um passado recente hoje temos as autarquias e os vários ministérios em sintonia com o desenvolvimento turístico do país?
Sinto cada vez mais que há um grande diálogo e uma grande articulação permanente entre as várias entidades públicas, quer a nível nacional, regional e local. Os empresários são fundamentais. Ao Estado cabe criar as condições para que a atividade económica se desenvolva da melhor forma, assumindo-se como regulador, garantindo que temos condições que promovem uma sã concorrência entre as empresas, mas também regulando as várias atividades e criando as condições que estão na esfera pública para garantir que cada vez mais a atividade turística se desenvolva da forma mais sustentável possível, incluindo na dimensão dos trabalhadores. O Estado tem este papel quase de fiel da balança para garantir que o desenvolvimento da atividade turística se faz tendo em conta os interesses dos diferentes players da atividade, e são as empresas, os trabalhadores, as escolas, as várias áreas que interagem no turismo. Aos empresários cabe assumir o risco do negócio, criar cada vez mais valor e serem eles também motores de inovação. Por exemplo, nas regiões menos tradicionalmente turísticas, o papel público do Estado pode ter uma intervenção muito mais ativa do que nas regiões mais maduras, nomeadamente sendo motor de desenvolvimento de produtos. Os Passadiços do Paiva são um exemplo, tendo sido a própria câmara que assumiu a necessidade de desenvolver um produto turístico que alavancasse o crescimento da região, com sucesso evidente, ao qual toda a iniciativa privada aderiu e se mobilizou num projeto comum. Mas aqui a necessidade de haver um arranque inicial de um projeto público para criar uma atração porque precisou de um investimento financeiro significativo. Outro exemplo, a Praia Fluvial de Monsaraz, o facto de a câmara ter criado a primeira praia fluvial do Alqueva com Bandeira Azul, uma praia acessível, serviu de ignição para o desenvolvimento da região.

 

Um dos problemas com que confrontou, no início do seu mandato, o atual Governo foi com a não criação de emprego no setor e com a fraca autonomia das empresas. Estas já são questões passadas?
Não, são questões a que temos de estar permanentemente atentos mas às quais conseguimos responder em termos de evolução da situação. Tínhamos uma quebra do emprego entre 2011 e 2015, sabemos que muitas pessoas emigraram, estavam já com alguns problemas em gerir a falta de recursos humanos qualificados em Portugal. Essa situação inverteu-se mas ainda temos que estar muito atentos para impedir que não é só uma inversão do número de pessoas a trabalhar, é preciso que seja uma inversão sustentada e de valorização das pessoas que trabalham no turismo.

A nível da autonomia financeira das empresas, trabalhámos muito articuladamente quer com a banca, quer com as associações do setor, no sentido de encontrar instrumentos financeiros que permitissem responder à fraca autonomia das empresas turísticas. Dou-lhe o exemplo da Linha Capitalizar que abrangeu cerca de 1000 empresas que acederam a financiamento num total de 61 milhões de euros. A nova versão da Linha de Qualificação da Oferta (LQO) foi criada em março de 2016. Estamos a falar de um total de 1500 empresas abrangidas por estes mecanismos de financiamento, que incluem também o Programa Valorizar, fundos de investimento imobiliário, Capital de Risco, num investimento de cerca de 600 milhões de euros. Ao nível da LQO aumentámos o esforço de risco do Turismo de Portugal para aliviar o risco da banca para que a banca fosse mais aberta a aderir às operações. E teve um resultado evidente, com uma grande procura e uma grande execução. Lançámos a linha inicialmente com 60 milhões de euros e tivemos de reforçá-la com mais 75 milhões, isso já foi este ano, e neste momento já estamos quase com execução total. É um instrumento com muita adesão. O Capitalizar ajuda também no reforço da autonomia financeira das próprias empresas.

São portanto dois problemas que tivemos capacidade, todos em conjunto, de encontrar aqui algumas soluções pragmáticas para responder às necessidades específicas do setor do turismo mas temos de estar sempre muito atentos para acompanhar a evolução e, principalmente, estar sempre a tentar antecipar quais vão ser as necessidades de investimento das empresas nos próximos anos para irmos criando mecanismos que respondam a estas necessidades. E naquelas que são as opções públicas criarmos instrumentos específicos para que os instrumentos financeiros sejam também aceleradores da implementação das políticas públicas.

A Linha Valorizar, por exemplo, foi um instrumento que criámos para dinamizar o aparecimento de produtos turísticos nas regiões de baixa densidade, um programa com uma grande adesão por parte dos vários territórios e que mostrou que neste momento há uma capacidade de ter ideias novas, uma criatividade nestes territórios que só é preciso muitas vezes criar os instrumentos que lhes deem oportunidade para se desenvolverem. Temos neste momento 152 candidaturas aprovadas no Valorizar, o principal desafio é como é que mantemos esta capacidade de acelerar este tipo de iniciativas que começam a surgir em todo o país e que permitem criar a consciência de que a fronteira entre Portugal e Espanha não existe em termos de mercado. Muitos destes produtos aproveitam a proximidade de Espanha para que o mercado seja ibérico, que tem 60 milhões de pessoas. Se pensarmos em portugueses e espanhóis como o nosso mercado interno percebemos que temos aqui uma grande capacidade de crescer se eliminarmos a barreira psicológica da fronteira.

Ainda ontem (à data da entrevista) estive nos Açores com operadores britânicos. Este ano a ABTA fez a sua convenção anual em Ponta Delgada e trouxe 450 operadores turísticos e jornalistas ingleses. Estive reunida com um operador britânico que me disse que esteve a construir um produto turístico Elvas – Extremadura espanhola, que sairá no programa no final deste mês. Para ele o futuro de Portugal passa por este tipo de produtos.

 

Estamos a meio do mandato do atual Governo. Olhando para o futuro, o que pretende? Iniciar, consolidar ou concluir até ao final deste mandato?
Grandes desafios. Número um: orientar cada vez mais a intervenção das entidades públicas para aquilo que foi identificado como estratégico na ET27. Em vez de andarmos reféns da rotina, assumirmos que para atingirmos aqueles objetivos a que nos propusemos todos, é preciso implementar os projetos necessários para que aquilo aconteça. É preciso reformatar e recapacitar as próprias equipas públicas para conseguirem implementar a Estratégia 2027 com uma monitorização anual para garantir o que estamos e não estamos a atingir. Cada vez mais o desafio é desligarmos e deixarmos de estar presos pela rotina para garantir que estamos com foco nos resultados que queremos atingir.

Número dois: capacitação e formação intensiva de recursos humanos no turismo, nomeadamente através da dinamização de programas de formação on job e também dinamização da contratação coletiva. É um dos meus grandes objetivos, chegar ao final deste mandato com os contratos coletivos de trabalho na área do turismo todos fechados. Neste momento já temos da restauração (AHRESP), das agências de viagens e falta-nos de hotelaria. É uma meta que quero atingir, ainda que não tenha competência direta sobre o assunto. É do interesse das empresas e dos trabalhadores.

Depois, aprofundar o modelo de articulação entre o Turismo de Portugal e as Entidades Regionais de Turismo e os municípios. Aqui há muito a fazer ainda e estamos a desenhar um modelo para garantir que o próprio desenvolvimento de produtos e a afirmação dos territórios por parte do Turismo de Portugal é feita em estreita articulação com as ERT’s e que se consegue que este puzzle esteja bem montado. Hoje em dia isso ainda não está bem conseguido. A vocação das ERT’s foi desde sempre serem gestoras de destinos mas é preciso que elas consigam exercê-la e consigamos garantir uma rede na qual a soma das peças dá o todo nacional. E que há cross-selling entre regiões, e que há um mecanismo de integração e articulação entre os vários players. Que há aqui uma maior capacidade de estruturar e desenvolver produtos, e de comunicar e promover os vários destinos nacionais e os vários produtos. Cada vez mais as ERTs têm de assumir as competências regionais de turismo, em articulação com a política pública de turismo e com os instrumentos nacionais criados.

Há outro desafio: cada vez mais capacitar os próprios municípios para se assumirem como promotores de desenvolvimento turístico do seu município. Temos exemplos fantásticos de vários municípios que já têm projetos de dinamização turística mas nem todos os têm. Estamos a tentar desenvolver um programa quase de capacitação dos municípios para serem também eles promotores do desenvolvimento turístico no seu território.

No fundo, é o Turismo de Portugal assumir aqui em colaboração com as ERTs a capacidade de capilaridade e de capacitação dos municípios para serem eles os agentes de mobilização dos seus territórios.

 

A AHP considera que a regulamentação dos empreendimentos turísticos está obsoleta…
Não diria obsoleta mas que precisa de atualização não tenho dúvidas. Eu tinha lançado o repto há uns tempos às próprias associações para apresentarem propostas de alteração, por acaso não recebi. Mas neste momento tenho o Turismo de Portugal a preparar uma revisão da Portaria da Classificação com duas orientações expressas: introdução de uma área dedicada aos recursos humanos, introdução de uma área dedicada às acessibilidades e simplificação de requisitos. Concordo que quanto mais se der possibilidade de criatividade e inovação no desenvolvimento dos produtos mais produtos inovadores surgem. Basta pensar que quando em 2009 se criou este sistema de classificação em que passámos a ter pela primeira vez requisitos opcionais e requisitos obrigatórios, a diferença que isso fez na nossa oferta turística. A quantidade de soluções inovadoras que apareceram nos hotéis, fruto da capacidade que se deu à oferta de inovar e de ter ideias.

 

Em que ponto está hoje o dossier da Diretiva Comunitária das Viagens Organizadas? A introdução desta iniciativa vai influenciar o negócio das agências de viagens?
A APAVT apresentou uma proposta conjunta com a DECO de transposição da diretiva e houve um trabalho articulado entre o Turismo de Portugal, Direção Geral do Consumidor, DECO e APAVT no sentido de avaliar aquilo que tinha de ser adaptado face às novas exigências da diretiva. O que estamos a tentar neste momento é que causem o menor impacto possível para as agências de viagens em termos da sua atividade normal e por isso tem sido muito interessante o diálogo que temos mantido com a APAVT e a DECO para conseguirmos encontrar soluções que não perturbem o mercado e que garantam aquilo que tem de ser cada vez mais um elemento distintivo das agências, a confiança que geram junto do consumidor e o consumidor saber que quando contrata com uma agência está sempre garantido.

O diploma tem que ser aprovado até ao final deste ano para entrar em vigor a 1 de janeiro de 2018. Até ao final do mês de outubro o diploma entrará em circulação no circuito legislativo.

Esta entrevista foi publicada na Edição 305 da Ambitur. Leia aqui a 2ª Parte desta Grande Entrevista.