Há 50 anos foram encontrados no interior do estado brasileiro do Piauí vestígios arqueológicos que desafiaram as ideias instaladas sobre a chegada dos primeiros homens à América. Na Serra da Capivara há, no meio de desfiladeiros imponentes e da natureza semiárida da Caatinga, mais 200 sítios com pinturas rupestres para serem visitados.
Chegamos ao sertão num Beechcraft King Air, um bimotor usado como táxi aéreo numa região onde as distâncias são longas e os transportes não abundam. É um voo de 1h45 desde Parnaíba, no litoral do Piauí, até São Raimundo Nonato, no sul, a pequena cidade que dá as boas-vindas a quem se aventura em busca dos vestígios dos primeiros homens americanos.
O Aeroporto de São Raimundo Nonato demorou a arrancar, as obras começaram em 2004 mas só foi inaugurado em 2015. Com as descobertas arqueológicas e a criação do Parque Nacional da Capivara, nos anos 70 do século passado, e o reconhecimento por parte da UNESCO, em 1991, acreditou-se que os turistas iam chegar. Foram chegando a conta-gotas e mesmo hoje o parque não tem mais do que 30 mil visitantes por ano. Hoje chegam voos de Recife e Petrolina, no estado vizinho de Pernambuco, e há esperança num voo de S. Paulo para breve.
A grande impulsionadora do aeroporto – como de quase tudo o que foi feito pelo desenvolvimento da região após a descoberta dos vestígios históricos – foi a arqueóloga Niède Gideon, hoje com 91 anos. É inevitável que o seu nome – a quem chamam “a doutora” – venha à baila assim que começamos a conversar com alguém.
Niède contou em entrevistas que teve conhecimento das pinturas pela primeira vez em 1963, em São Paulo, numa exposição fotográfica sobre a arte rupestre de Minas Gerais. Um morador da pequena cidade do Piauí abordou-a e disse-lhe que na sua cidade existiam pinturas semelhantes. A Ditadura Militar fez com que Niède passasse os anos seguintes em Paris (é franco-brasileira) e só em 1973 anos fosse ao Piauí, liderando uma missão arqueológica patrocinada pelo governo francês. Acabou por se mudar para lá definitivamente em 1992.
Os achados de Niède foram polémicos na comunidade científica por abalarem o consenso que existia sobre o povoamento das Américas. A teoria vigente afirmava que o Homem chegou ao continente a partir do Estreito de Bering, entre a Sibéria e o Alasca, há 15 mil anos e de lá migrou para sul. As datações feitas por Niède na Serra da Capivara remontam a tempos anteriores: ossadas humanas com 15 mil anos, pinturas rupestres com 35 mil anos e restos de fogueiras com 48 mil anos.
O Parque Nacional da Serra da Capivara é administrado pelo Instituto Chico Mendes de Biodiversidade (ICMBio), em co-gestão com a Fundação do Homem Americano (Fumdham). A última contagem contabilizou 25 mil conjuntos de pinturas dentro dos 130 mil hectares da área do Parque Nacional da Capivara. Desses, 206 estão abertos a visita e 12 são acessíveis a pessoas com dificuldades de locomoção.
Há muito para ver e por isso é bom começar cedo. O Parque abre às 6h e fecha às 18h. Existem 14 circuitos organizados que podem ser visitados, sempre na companhia de um guia autorizado. O ideal é ter um carro, por isso, convém tratar disso com antecedência.
Começar cedo é aconselhável também por causa do calor, ou não estivéssemos em pleno sertão. O guia, Giordano Macedo, 45 anos, explica que durante o primeiro semestre do ano a visita é mais agradável porque a temperatura é mais amena, a Caatinga está verde e há flores.
Giordano é um veterano nos caminhos do parque. Trabalhou nas escavações, ao lado dos arqueólogos, ajudou a montar os circuitos e, desde 2005, que recebe turistas através da agência Selva Branca. Recorda que Niède estimulava a descoberta de sítios pagando 50 reais para cada pessoa que encontrasse novos sítios. “As pessoas não mexiam nas pinturas, até por questões religiosas, achavam que eram dos índios, que eram pinturas dos caboclos, que podiam voltar para os assombrar”.
Por “sítio” é entendido qualquer local com vestígio de ocupação humana.
O Sítio do Meio, o Boqueirão da Pedra Furada e Pedro Rodrigues são os mais visitados. Ali é possível apreciar figuras da chamada “Tradição nordestina”, que é a mais representada no parque: são representação de movimento, dinamismo, cenas da vida corrente, animais, sexualidade, de entre 13 500 a 12 mil anos. Mas existem figuras de ocupações diferentes, o mais antigo de 28 a 37 mil anos.
Considera-se que na Capivara existe a maior concentração de sítios pré-históricos da América e é um dos locais arqueológicos mais importantes da América e do mundo. Giordano nota que “existem painéis com 1300 figuras”.
Através da análise de vestígios de fogueiras foi possível concluir que o Homem esteve ali há 40 mil anos. Estes dados colocaram em causa as teorias de Clovis e Folson, no Novo México, EUA, onde no início do século XX se encontraram vestígios arqueológicos com 13 mil anos e que se acreditava serem dos primeiros homens a habitar o Novo Mundo. Apesar das críticas dos norte-americanos, Niède manteve-se firme na sua convicção de que o Homem chegou à América por várias rotas.
Marcelo Alves é arqueólogo, guia na Serra da Capivara e também grande conhecedor das árvores e plantas da Caatinga, com as quais diz que existe uma espécie de ligação mística. São mais de 600 variedade de plantas, onde se destaca o cato mandacaru, que atinge a altura e o porte de uma árvore, ou o Juazeiro (ou árvore de Juá) cujas folhas, flores e frutos são usados para quase tudo. Na área do parque existem mais de 30 mamíferos (sendo a onça pintada o maior deles) mais de 216 aves e 17 serpentes diferentes.
Até há pouco tempo o Piauí era o estado brasileiro menos desmatado, mas isso está a mudar. O preço das terras, mais baixo do que nos estados do sul, tem levado ao crescimento do agro negocio, que é a maior ameaça, com produções de soja, milho e algodão, mas também de explorações pecuárias (caprino e ovino). Outras atividades que representam uma ameaça é a mineração, de ferro e manganês, sobretudo, e a implantação de parques eólicos. “O Piauí é a região do nordeste que mais produz mel mas o desmatamento pelo agro afeta as abelhas, o lobby do agro é muito forte, é uma guerra permanente”, diz Marcelo.
Existem planos para a criação de um imenso geoparque que junta os 135 mil hectares do Parque Nacional da Serra da Capivara, com o Parque Nacional da Serra das Confusões (onde também foram encontradas pinturas e decorrem escavações) que, com 800 mil hectares, engloba também a Reserva Biológica da Serra Vermelha, já no extremo sul do estado.
Este corredor ecológico é uma das áreas florestais mais extensas do Nordeste, importante para a conservação da Caatinga e também do Cerrado, outro bioma da região. Foi aqui que em 2006 o IBAMA autorizou a instalação de um grande projeto de produção de carvão vegetal, por uma empresa alemã, para a indústria siderúrgica. Seriam derrubados 78 mil hectares de área nativa, mas a contestação e a pressão das ONGs e da sociedade travaram o projeto.
Um dos mais acérrimos defensores da Caatinga dessas é o fotógrafo e ambientalista André Pessoa. “Na época, o André foi ameaçado, teve que ficar escondido por três anos. A caatinga está salva muito graças ao André”. Quem o afirma é o amigo e sócio Tony Nogueira. Há 23 anos foram juntos para o sertão do Piauí realizar um documentário sobre o património da Caatinga e rapidamente decidiram comprar um sítio na região.
Em plena pandemia tiveram a ideia de transformar o sítio numa pousada e o Rupestre Ecolodge abriu em 2021, oferecendo conforto no sertão. A par mantêm um projeto de reflorestação com o Viveiro Mata Branca, através do qual distribuem mudas da Caatinga gratuitamente.
Uma visita à Serra da Capivara não fica completa sem a visita ao Museu da Natureza, instalado num edifício com 4 000 m2 entre a Caatinga e os desfiladeiros onde se escondem as pinturas rupestres. Nas 12 salas do museu é contada a história da vida na Terra a partir das grandes mudanças climáticas. Outra atração é o Museu do Homem Americano, este na cidade de São Raimundo Nonato, criado para divulgar o património deixado pelos povos pré-históricos que ocuparam a Serra da Capivara.
Na Cerâmica Serra da Capivara vamos encontrar as figuras que enfeitam os penhascos reproduzidas em pratos e canecas. A Cerâmica foi uma ideia (mais uma) da arqueóloga Niède Guidon para que as populações tivessem outras formas de rendimento. Já se fazia telha e tijolo e Niède achou que haveria uma argila boa. Em setembro, no pico da seca, a argila é retirada de barreiros e armazenada para ser usada durante todo o ano.
António Marcos, 49 anos, responsável pela produção, conta que a Cerâmica é o maior empregador da cidade Coronel José Dias, (outra pequena cidade abrangida pela área do Parque). No complexo da cerâmica trabalham 89 pessoas. É o caso de Girleide Oliveira, que em 1989 veio de Pernambuco para trabalhar na Serra onde também é responsável pela gestão do hotel que, com 17 apartamentos, recebe muitos grupos.
A falta de meios de subsistência foi uma questão que se colocou a Niède Guidon aquando da formação do parque. As famílias que viviam na área que foi decretada Parque tiveram que deixar as suas casas. Passou a ser proibido caçar, plantar ou criar animais, o que acabou com o modo de vida local. Umas foram retiradas outras foram embora, umas foram indemnizadas, outras não, por falta de documentação. Umas instalaram-se nas imediações das cidades mais próximas, como Coronel Dias ou São Raimundo Nonato, enquanto outras partiram para as cidades grandes em busca de trabalho, destino de muitos nordestinos.
Em alguns meses, as famílias reduziram-se às mães e aos filhos menores, que ficaram. As mulheres foram contratadas para as atividades de conservação e preservação do património do Parque, assumindo as guaritas e os portões de entrada, por exemplo, onde ainda se mantêm. “Onde havia homens a doutora trocou e colocou mulheres, eles não limpavam e gastavam tudo em álcool. Hoje todas as guariteiras são mulheres, os homens foram para o campo, são guardas, e, desta forma, a renda chegou até elas. Agora, o homem tem a mota dele e a mulher tem a mota dela”, explica Giordano.
Projetos como o da cerâmica foram trazendo os homens de volta. “As pessoas hoje já estão pacificadas com a criação do Parque, muitas já tem filhos e netos que têm trabalhos relacionados com a atividade do Parque, como arqueólogos ou guias de turismo”, continua Giordano.
Niède Guidon sempre envolveu a comunidade, as escolas, as crianças e os pais, num trabalho grande de sensibilização para a necessidade de preservar o tesouro que tinham às portas de casa. Hoje é a eles que cabe a tarefa de proteger e divulgar aquilo que os primeiros homens a chegar a onde hoje é o Piauí deixaram: uma das maiores coleções de arte rupestre ao ar livre do mundo.
Como chegar
A melhor forma de chegar à Serra da Capivara é voar para Recife, com a TAP, e daí voar com a Azul para São Raimundo Nonato.
Por Cláudia Silveira. Fotos @Núbia Lira. A AMBITUR visitou o Piauí a convite do SEBRAE (Serviço Brasileiro de Apoio às Micro e Pequenas Empresas) e da VBRATA (Visit Brazil Travel Association).
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