Projeto Creceer: Apoiar os pequenos produtores e estimular o Turismo

Estimular a atividade turística passa também por apoiar os produtores a desenvolver e vender os seus produtos no mercado global. Fomos visitar alguns dos produtores e locais que fazem do território interior um local singular dentro de Portugal.

Fernanda Amaral herdou da mãe e da avó o jeito para a confeção de enchidos. Chouriças de carne, paio do lombo, farinheiras, morcelas, tudo feito de forma artesanal e seguindo as receitas mais originais, herança da família. A urtigueira é outra variedade, feita com as urtigas que abundam nas margens do Mondego, que passa ao lado de Fornos de Algodres, onde está instalada a Fumeiro D’Amaral. Para a parte comercial do negócio, Fernanda conta com a ajuda do filho João, que já foi paraquedista e hospedeiro da Ryanair.

Para apoiar os pequenos produtores – como Fernanda Amaral – dos setores agroalimentar e turístico nos meios rurais transfronteiriços, foi criado em 2017 o Projeto Creceer, cofinanciado pelo Fundo Europeu de Desenvolvimento Regional (FEDER) através do Programa Interreg V-A Espanha-Portugal (POCTEP) e com diversos parceiros dos dois lados da fronteira.

Os incêndios que devastaram a região Centro e mais tarde a pandemia de Covid19 atrasaram o processo mas no mês passado os intervenientes do lado de Portugal reuniram-se no Teatro Municipal da Guarda para apresentar os resultados do projeto.

Filomena Pinheiro, diretora do departamento de estratégia e operações da Turismo Centro de Portugal, parceiro do projeto, nota que os objetivos eram muito específicos: melhorar a qualidade do design dos produtos e o serviço, incorporar as novas tecnologias nos modelos de negócio e criar uma identidade comum que valorize os recursos endógenos no mercado alargado. “Um artesão de 80 anos não sabe mostrar o seu produto num mercado alargado”, notou.

A necessidade de ter uma presença online foi acentuada pela pandemia que acabou ter um impacto positivo no comércio online, como referiu Paulo Gonçalves, do Núcleo Empresarial da Região da Guarda, que oferece serviços de consultoria, inovação tecnológica para PMES e estratégias de marketing digital e também foi parceiro no Creceer.

Isto significa na prática, entre outras coisas, que hoje, ao invés de apenas podemos comprar os enchidos de Fernanda Amaral no Mercado Municipal de Fornos de Algodres, também os podemos adquirir, por exemplo, em obomsabordaserra.pt .

O presidente da Turismo Centro de Portugal, Pedro Machado, não tem dúvidas de que sem empresas e empresários não existe atividade turística e, por isso, “é essencial apoiar e estimular as singularidades dos territórios para fazer crescer o turismo”. Foi com essa ideia em mente que convidaram um grupo de jornalistas do setor a conhecer alguns dos projetos apoiados por esta iniciativa.

Chamam-lhe Terra de Silêncio e não é por acaso. No Colmeal Countryside Hotel, alojado numa encosta de xisto da Serra da Marofa, a poucos quilómetros de Figueira de Castelo Rodrigo, os eventuais sons que nos chegam estão tão integrados na paisagem como os abutres pousados na escarpa em frente.

A meia dúzia de casas que compõem o Colmeal – agora todas, ou quase todas, adaptadas ao hotel – não deixa adivinhar a história que se esconde por trás das paredes de pedra. Diz a história que a povoação foi primeiro doada por D. Fernando de Leão aos frades da Ordem de S. Julião do Pereiro em finais do século XII. Já no século XV ali residiu o navegador Pedro Álvares Cabral, na casa que ainda hoje mostra o brasão dos Cabral e que pertencia ao alcaide de Figueira de Castelo Rodrigo, seu avô. Saltando cinco séculos, em julho de 1957 toda a população da aldeia foi despejada por ordem do tribunal na sequência de um processo movido pela herdeira das terras. A aldeia permaneceu vazia e em ruínas até que alguém se apaixonou por ela. Em 2015 abriu o Colmeal Countryside Hotel.

É Gabriela Castro Fernandes, diretora operacional do hotel, quem nos conta as histórias da terra enquanto indica o caminho até às pinturas rupestres ali perto. Numa rocha elevada, que em tempos poderá ter sido uma gruta, lá estão os vestígios neolíticos com figuras antropomórficas. Nos 650 hectares da propriedade (mais 100 para a caça desportiva) o que não falta são trilhos e caminhos para conhecer.

Se história e natureza não faltavam no Colmeal, agora também não falta conforto. O arquiteto Pedro Brígida, autor do projeto, manteve as paredes exteriores, juntou-lhes vidro e cortiça, e construiu por dentro. São apenas 14 quartos e o sossego está assegurado. Aos fins de semana ao almoço é frequente receberem clientela espanhola que vem à procura do menu gourmet assegurado pelo jovem chef Rafael Fonseca.

Do Colmeal até à Casa Agrícola dos Arais, em Vide-entre-Vinhas, Celorico da Beira, é uma boa hora de caminho. À chegada somos brindados com a mesa posta no meio da eira e os queijos Serra da Estrela de Célia Silva à espera. Esta engenheira zootécnica trabalhava numa cooperativa agrícola em Vila do Conde quando resolveu escutar o chamamento das raízes e voltar à terra e retomar a atividade dos avós.

Tem 250 ovelhas, em terrenos dispersos, da raça bordaleira, que era a que o avô já tinha. Para o fabrico do queijo da Serra da Estrela DOP só pode ser usado leite de ovelhas de raça Serra da Estrela ou churra mondegueira, esta já em vias de extinção. “As ovelhas têm que estar todas inscritas num livro genealógico da raça. E o leite tem ainda que provir de rebanhos da região demarcada da Serra da Estrela”, explica.

O fator mais importante para um queijo de boa qualidade é mesmo a qualidade do leite. De resto, é sal e flor de cardo, plantado ali mesmo, na propriedade. A confecção não difere muito da forma que os avós faziam.

A próxima paragem é o Museu do Pão, em Seia, onde está assegurada uma visita pela história do pão, alimento ancestral e presença fundamental nas mesas portuguesas. É uma visita orientada para as crianças, que são a maior parte dos visitantes, mas que encanta também os adultos. Como bónus podemos ainda ver a escrivaninha de Fernando Pessoa e uma primeira edição da “Mensagem” assinada pelo poeta (os emblemáticos óculos do autor foram para a Brasileira, no Chiado, em Lisboa, que também pertence ao grupo empresarial que é proprietário do Museu).

Depois de um almoço de açorda de borrego (uma estreia) atravessamos toda a Serra da Estrela em direção à Covilhã. Mas o nosso destino é a Quinta dos Termos, em Belmonte. Ali, de costas voltadas à serra, com exposição a sul, desde 1993 que João Carvalho, um engenheiro têxtil, professor universitário por mais de 20 anos, experimenta com as castas tradicionais da Beira Interior. Trincadeira, rufete, jaen, a fonte cal, nas brancas, mas também alfrocheiro, touriga nacional e tinta Roriz, “Há sempre novidades a surgir aqui na quinta”, diz. Agora conta com a ajuda dos dois filhos, porque o negocio dos têxteis ainda lhe ocupa muito tempo e não pretende abrandar.

De volta à estrada, em pouco mais de meia hora estamos no Fundão, no Convento do Seixo Boutique Hotel & Spa, onde vamos passar a noite. Conhecido localmente como a Ermida de Nossa Senhora do Seixo, das ruínas de um convento de monges Capuchos, de 1577, nasceu este hotel de luxo, fruto da iniciativa de um empresário local. Eurico Augusto já tinha reabilitado também um antigo solar que é hoje o Cerca Hotel Design, também no Fundão.

Envolvido pelas serras da Estrela e da Gardunha, a austeridade do granito predomina, conjugada com os coloridos veludos dos sofás. Os quartos são grandes, a piscina é panorâmica mas o tempo é pouco e na manhã seguinte já seguimos para Castelo Branco para conhecer o Parque Barrocal.

Fora da cidade, é um espaço delimitado que serve como parque de interpretação da paisagem, da história local e da história natural e biodiversidade da região. Dali saiu ao longo dos séculos o granito com que se ergueu Castelo Branco, o seu Castelo, a sua Sé Catedral, as suas ruas e avenidas.

O parque ganhou em 2020, o ano em que abriu, o prémio World Architecture News Awards – Wan Awards, na categoria paisagens urbanas. A Câmara de Castelo Branco investiu 1,4 milhões de euros na sua construção. Tem 40 hectares, dentro dos quais há várias formações geológicas de interesse, como a Pedra da Rondoa (que teve diversas utilizações ao longo dos anos e onde foram encontrados artefactos da Idade do Bronze), passadiços e trilhos naturais. As atrações mais populares são o Observatório dos Abelharucos, um local para a observação de aves, construído para se integrar na paisagem, e o “lagarto”, um túnel ondulante feito de ripas de madeira.

Entre a vegetação predominam as giestas, o sobreiro, a esteva, o rosmaninho e a floresta de carvalhos que, no entanto, não chega para nos proteger do sol neste dia quente de junho. Leve chapéu e vá com tempo. Até ver, a entrada é livre.

Em Castelo Branco o anfitrião foi o INOV Cluster Associação do Cluster Agro Industria do Centro, parceiro do Creceer, e que organizou um almoço baseado em alguns dos produtos que receberam suporte do programa.

No restaurante Piscina Praia (como o nome indica, é uma piscina que parece uma praia) encontrámos Leonel Barata. Depois de anos a trabalhar com peixe do rio na restauração, um dia pensou se não seria boa ideia comercializá-lo em conserva, dada a sua “enorme potencialidade gastronómica”. Assim nasceu a marca Bem Amanhado – Iguarias de Peixe do Rio, que já está a chegar a um público mais vasto do que aquele que está habituado a consumir peixe do rio, ou seja, as populações do interior.

São receitas da cozinha tradicional portuguesa preparadas de forma artesanal. Assim, podemos encontrar achigã assado no formo, barbo em caldeta, carpa grelhada, escabeche de lúcioperca e sável frito. “Ao trabalhar com espécies consideradas predadoras e exóticas estamos também a contribuir para o equilíbrio das águas portuguesas”, diz, e explica que o negócio assenta numa pesca sustentável entre os meses de novembro e maio.

Degustadas as conservas e os enchidos tradicionais da Salsibeira, de entrada, voltamos ao achigã em conserva, desta vez preparado à Brás. À sobremesa experimentamos um gelado artesanal da casa, de azeite, mel e borrachão. O café foi acompanhado por biscoitos de café e compota de laranja e café da marca Doces Saberes, que a Rita Santa Cruz, da aldeia do Carvalhal, em Proença-a-Nova, nos levou para provar.

No final deste pequeno périplo pelo interior acabamos com a certeza de que o interior tem para oferecer muito mais do que podemos suspeitar. E que nos faz querer voltar uma e outra vez.