O Alentejo é o destino do mês de junho na Ambitur.pt. Num roteiro de cinco dias pela região norte e centro deste vasto território, pudemos conhecer melhor as histórias e “estórias” de projetos, imóveis, centros interpretativos, lugares de “culto” aos vinhos e à boa gastronomia alentejanos, sempre contadas pelos próprios, por quem ali vive e melhor do que ninguém sabe do que está a falar.

Em Alcáçovas ainda se produzem chocalhos, mas resta uma oficina, das 20 que já pautaram a região. Um objeto de simples produção, mas que só resulta, hoje, da sabedoria acumulada, ao longo de milénios, na sua execução. Um simples produtor de sons que guiou e ainda guia o gado pastoril ao longo das planícies e serras do Alentejo, nos últimos séculos. Fomos até Alcáçovas conhecer a Fábrica de Chocalhos do “Pardalinho”. Assim como esta tradição, também o apelido da fábrica e da família se perde nos tempos, talvez porque os sons do pardal se possam assemelhar de alguma forma aos dos chocalhos ou ali em tempos se tenha buscado a sua afinação. Com um chilro, de som vibrante e alegre, usado para comunicação quotidiana; e pios curtos, em sons repetitivos, especialmente quando estão em grupo – assim se quer um chocalho, para que o gado se guie e permita dar a informação a quem o ouve de alguma urgência pelo qual passe.
Processo de fabrico
“O processo começa todo pela chapa de ferro. Nós cortamos a chapa de ferro, depois talhamos aqui na tesoura e vamos moldar com o martelo na bigorna, que é o que está a acontecer agora. Estamos a moldar o chocalho, neste caso está a fazer as orelhas do chocalho”, visualiza-nos o início do processo de produção de um chocalho Guilherme Maia, um dos proprietários da fábrica. Neste local, está um mestre, que faz o acerto sonoro dos chocalhos, mas já lá iremos; outra operária lida com o forno, colocando, virando ou tirando casulos de barro. Os vários processos de fabrico deste objeto considerado Património Cultural Imaterial são realizados na fábrica, cada canto para uma etapa. “A esta parte nós chamamos de fazer o corpo do chocalho, que é o que está aqui. Este é um modelo que é o «picadeira» e este que o meu pai está a fazer é o «reboleiro». O primeiro mais largo em cima e mais estreito em baixo e este é todo por igual, é mais direito. São os dois modelos que fabricamos atualmente”, acrescenta o responsável.
O chocalho tem orelhas, asa, céu e batente. É este o corpo do chocalho. Mas para o criar é necessário fundir ferro com cobre, estanho e zinco. “Depois, a partir daqui, o que é que nós fazemos? Vamos cortar o latão. O latão que tem uma percentagem de cobre, estanho e zinco. A maior percentagem é de cobre. Cortamos o latão, mas cada tamanho de chocalho tem o seu peso de latão. Nós pesamos o som”, sentencia Guilherme Maia.
Quando se fala em chocalhos, surge visualmente o gado ovino ou bovino, vagueando pelos seus campos. Mas também, em muitas terras do Alentejo, é usado nas suas tradicionais festas. Por exemplo, na noite de Páscoa, em Castelo de Vide. Onde uma população de locais e visitantes anseia pelo fim da missa para que possam marcar o ritmo da procissão que se segue, ao som de uma enorme chocalhada.
Ao som de uma família
Os Chocalhos Pardalinho é gerida por uma família, neste caso por duas, que teimam em manter e desenvolver um negócio de gerações, e que representa muito mais do que isso para a tradição desta terra. “A tradição, o que era normal, era ser passado o conhecimento (desta arte) de pais para filhos. Nesta empresa, foi um bocadinho diferente. O meu pai aprendeu com um tio. Esse tio não tinha filhos. O meu avô era pedreiro, estava na Constituição Civil. E na altura achou que era melhor o meu pai seguir uma atividade que não andava ao rigor do tempo e que se trabalhava sempre dentro de uma oficina. Na altura, pagou ao tio para lhe ensinar a profissão. O meu pai começou com 10 anos a aprendizagem, esteve até por volta dos 20 anos com este tio, Francisco Pires Barroso, e depois foi para a Guerra do Ultramar”, explica Guilherme Maia. Histórias que se tornam memórias, histórias que alteram a história. “Depois, quando regressou, da Guerra do Ultramar, este tio faleceu. Faltavam uns pormenores da parte do processo de fabrico, como, por exemplo, a afinação”, que o seu pai ainda não dominava. Mas, resolve-se, pedindo ao mestre chocalheiro Gregório Rita, “que fez o favor de terminar o ensinamento”. Este jovem Pardalinho fez sempre carreira a solo, mas as muitas dificuldades persistiam. A esposa decide-se então a abdicar da sua profissão de cabeleireira, “e aprender com o meu pai a fazer os chocalhos pequenos”. Continua Guilherme Maia, “a minha mãe trabalhou muito tempo com o meu pai. O meu pai fazia os grandes, a minha mãe fazia os chocalhos pequenos. Entretanto, eu andei sempre a estudar e quando concluí o 12º ano, por minha livre iniciativa, decidi abraçar o projeto dos chocalhos”. Hoje defende a tradição, mas naquele tempo os seus pais ficaram com desgosto devido à não frequência de curso, “mas foi uma opção minha e eu acho que ainda bem que o fiz”. Avançam então com a Fábrica de Chocalhos Pardalinho, com Francisco Cardoso, “que é o meu sócio, que é da minha idade e andámos sempre à escola juntos. Era pastor numa cooperativa em Alcáçovas. O meu pai, para além de músico, lecionava lições de solfejo e de instrumento, ensinava música para a Filarmónica da região, a Sociedade União Alcaçovense. E o Cardoso, duas vezes por semana, ia à lição lá na antiga oficina do meu pai. E a minha mãe um dia lembrou-se de lançar o desafio ao Cardoso para aprender a fazer chocalhos. O Cardoso não disse nada, acabou a lição, foi para casa, foi para o trabalho, despediu-se do trabalho e apareceu lá para aprender a fazê-los. E aprendeu a fazer chocalhos com o meu pai e com a minha mãe. Começou a trabalhar connosco e na altura trabalhávamos os quatro”.
Como num processo de fabrico de chocalhos, cada processo tem a sua vez. “Entretanto, o meu pai decidiu reformar-se e eu lancei o desafio ao Cardoso para fazermos uma sociedade e criarmos a Sociedade do Chocalho Pardalinho. É uma homenagem ao meu pai, José Luís Reis Maia, quando ele começou havia 20 oficinas. O meu pai era o mestre dos chocalheiros, dos mais novos que havia. Mas sempre foi conhecido por Zé Pardalinho. Foi um nome que ele herdou já de família. O meu avô também era Zé Pardalinho. (Fazendo lembrar a música Quem me Vê, de Luís Trigacheiro) Achei piada o nome. E, além da homenagem, é um nome que fica”.
Processo de Fabrico II
Se num chocalho, em vez de se colocar 14 gramas de latão, se colocar 20 gramas, o som será mais agudo. O padrão achado pelos Chocalhos do Pardalinho é um padrão intermediário, com 12 gramas. “Se for mais pesado, fica mais agudo. Se for menos que esse peso, o tom é mais grave. Por isso é que eu digo que pesamos o som”, remata Miguel Maia. O latão também é o elemento que dará a cor ao chocalho.
Tendo o ferro, forrado com o latão, na fábrica procede-se ao seu isolamento com papel (para não se sujar a peça) e depois procede-se ao seu embarramento (numa solução de barro com palha triturada – moinha, com uma última passagem pela fieira), para que as chocalhos sigam, após o casulo de barro seco, para a fundição no forno a gás a 1250 graus. O barro quer-se de Alcáçovas, “porque nós experimentámos barro de outras zonas do país. Não sei explicar, mas não resultou. Se calhar também não é por acaso que havia muitos chocalheiros antigamente em Alcáçovas”.
Dentro do forno o latão fica líquido e a chapa de ferro fica ao rubro, quanto maior for o chocalho mais tempo se passa, e vai-se virando a peça. O latão envolve todo o ferro no interior e no exterior, soldando as costuras existentes. Agora já é um corpo só a que se segue um choque térmico, retira-se o cuscumalho, o barro vidrado (que fazia de casulo), do chocalho.
“O choque térmico é para depois vibrar mais. Fica com maior vibração. Depois voltamos novamente ao banco de mestre e vamos afinar o chocalho”, descreve Guilherme Maia. O objetivo da afinação não é dar uma nota musical, é em cada chocalho obter o melhor som que cada um pode dar, em termos de vibração. Pretende-se melhorar as ondas sonoras que cada chocalho tem. Quando nós dizemos que o chocalho está muito rápido é porque a propagação do som acaba rápido, sendo assim o ideal é conseguir uma onda sonora intermédia, de forma a que seja audível o mais longe possível, no maior período de tempo. Para o entrevistado, o chocalho é o GPS do gado, porque “o proprietário do gado quer saber onde é que ele anda. Se quer dar alimentação, se os quer ir buscar ou para saber onde é que ele anda. Ou então, por exemplo, se o som for diferente do som normal pode ser motivado por um predador. Se ouvir que o som é mais agitado, e se não for um predador, pode haver qualquer problema. Quando percebe que o toque é diferente, o dono fica desperto, irá ver o que é que se passa”.
“O que distingue os Chocalhos de Alcáçovas, inclusive dos de Espanha, para além da qualidade de produção, é a afinação. Todos os mestres chocalheiros de Alcáçovas foram ou são músicos, temos essa particularidade”, indica Guilherme Maia. Segue-se o polimento do chocalho, “era o que eu estava a fazer, a puxar o brilho”. Para completar o chocalho segue-se o badalo, feito em madeira de azinho, sendo que cada um tem o seu tamanho de cabeça. “Abadalamos. Os badalos são os pastores que os fazem. Mas é um problema que temos, grave. Porque não há pastores”, indica o entrevistado.
Segue-se a última componente da peça, as coleiras, em pele (de Alcanena, transformadas em Alcáçovas), e fivelas, em metal.
Unesco
A entrada da fábrica dos Chocalhos Pardalinho tem uma mostra de chocalhos “apadrinhados” por figuras públicas. Começou com o Presidente da República, Marcelo Rebelo de Sousa, depois surgiram todos os outros, incluindo o Papa Francisco e Cristiano Ronaldo. O grande impulso para esta nova notoriedade do fabrico de chocalhos foi dado com a elevação desta arte a Património Cultural Imaterial, pela UNESCO, sendo considerada oficialmente uma arte singular que existe na região do Alentejo há mais de dois mil anos. O facto de ter sido classificado Património Intangível da Humanidade é também uma forma de salvaguardar este ofício. O chocalho português é um instrumento de percussão tradicional, com um som inconfundível e um papel fundamental na paisagem sonora das áreas rurais, sobretudo onde ainda se pratica o pastoreio. Para Guilherme Maia, esta distinção foi muito importante, porque a atividade e o objeto ganharam estatuto. “Ou seja, nós já éramos muito visitados por turismo, já nos compravam chocalhos, mas notou-se que a procura aumentou. E é uma forma muito importante de nos ajudarem a vender o nosso produto. Porque nós não podemos viver só de um objeto para gado, este também tem que ser um objeto decorativo e procurado para outros fins” porque esta “é uma atividade muito sazonal e nós temos que vender porque na nossa empresa somos quatro pessoas e essas quatro pessoas vivem exclusivamente desta atividade”.
Hoje o Pardalinho tem chocalhos dos quatro aos dois mil euros, estes chocalhos grandes personalizáveis, “que mais ninguém faz, porque além de sermos a única oficina, comprámos uns fornos de gás próprios para o efeito. Antigamente os chocalhos eram soldados numa forja igual à dos ferreiros e quando se fazia um chocalho com 50 cm aquecíamos um lado e arrefecia-se o outro e tecnicamente era muito moroso e muito problemático”. Outro dos produtos da sua fábrica são as campainhas também reconhecidas pela Unesco, a função é idêntica à do chocalho, mas o tom da campainha é sempre mais agudo, para Guilherme Maia o argumento que eu tenho é que o chocalho é mais durável devido à força onde atua a campainha ou o badalo.
A Fábrica pode ser visitada de segunda a sexta-feira de forma individual ou em grupo. Existem dois tipos de visitas. Uma em que o visitante observa o que está a acontecer na fábrica, outra que inclui uma explicação do início ao fim do processo, com um mestre chocalheiro dedicado. Pode haver acompanhamento em inglês.






















































