Conversas Trocadas: Experiências que inspiram o Turismo (I)

Há alguns meses atrás, Luís Araújo, presidente do Turismo de Portugal, por proposta da Ambitur, promoveu um encontro inédito na Escola de Hotelaria e Turismo de Lisboa. Sentou à mesma mesa Cuca Roseta, fadista, e Paulo Pereira da Silva, CEO da Renova, para se falar de inovação. Poderia a inovação do Fado e da Renova, duas marcas nacionais de projeção em todo o mundo, influenciar a dinâmica empreendedora e de inovação que se verificava no turismo nacional a ir mais além? Hoje, tudo mudou, mas será que só nas aparências, porque no final de contas, a essência do empreendedorismo e da inovação empresarial irá manter-se, adaptando-se a novas realidades?
Publicamos agora a reportagem que resulta dessa iniciativa, onde se fala na autenticidade, paixão, em como as novas gerações de portugueses estão a abrir os seus horizontes, da vergonha, da curiosidade, de como os consumidores se devem tornar fãs. Será que a inovação no Fado e na Renova, através das experiências de Cuca Roseta e de Paulo Pereira da Silva, poderão inspirar o Turismo? Publicamos aqui a primeira parte destas Conversas Trocadas.

Pedro Chenrim: Assim como a evolução do fado, nos últimos anos o turismo cosmopolita nacional atingiu novos patamares e fronteiras, tal como a Renova. Este é um caminho feito entre a simbiose da tradição e da modernidade. Como se alia a tradição à modernidade…

Paulo Pereira da Silva: Estou dentro de uma indústria de papel e consumo, com produtos que as pessoas valorizam muito pouco, a não ser quando não os têm. É um produto muito barato, apesar de as pessoas terem a noção de que é caríssimo, não havendo nenhuma ligação afetiva ao produto. Esta é uma indústria fantástica porque tem conseguido fazer um produto muito barato, com quantidades muito grandes, o que a torna extremamente competitiva. Isso implica sempre alguma modernidade que afaste a tradição, senão estou morto empresarialmente. Esta é uma indústria de engenheiros, há sempre um ponto de vista muito empresarial das coisas. Como se ligam as fibras, como se faz mais barato, mais rápido, mais automatizado, esquecendo-nos muitas vezes do produto, para que serve.

Eu achei que se devia alterar um pouco as coisas. Esta é uma empresa portuguesa familiar, e aqui está a componente tradição, que não se quis vender a multinacionais, que está no Portugal profundo, Torres Novas. A Renova foi uma marca fundadora, a primeira em Portugal a fazer este tipo de produtos, e sempre líder no país, mas que não existia fora de portas.

Há 20/30 anos considerámos que a única maneira que tínhamos de sobreviver como marca era estar lá fora. O mercado português é muito pequenino, se uma multinacional aparecesse cá dava cabo de nós num instante. A única forma de darmos a volta a este contexto era crescer fora. Ao início, este foi um trabalho bastante difícil, conseguido com inovação. Tivemos que fazer coisas diferentes. Esta procura obrigou-nos a inovar, a construir soluções diferentes, com uma visão de olhar para a finalidade do produto. O nosso produto é para o corpo, para limpeza da pele, não é somente fibras. A partir daí tentámos ir buscar todos os conceitos da cosmética e do tratamento da
pele. Ao nível dos guardanapos entrámosno conceito da decoração e do lifestyle, ou seja, há aqui uma mudança na maneira de comunicar o produto, assim como de inovar, construir e inventar produtos.

Houve aqui algo que teve alguma importância: o papel higiénico preto. Foi uma “pedrada no charco” que nos trouxe legitimidade na indústria. Foi um produto que foi apresentado, por acaso, no Salão de Maison & Objet de Paris, num expositor Nellly Rodi, que tinha a mesma agência de comunicação que nós, e cujas tendências para aquele ano incidiam no preto e dourado, pelo que nos pediram um protótipo do produto. E este “saltou” imediatamente para os jornais. Enquanto nos anteriores 500 lançamentos de produto não tinha sido fácil conseguir que uma revista falasse sobre um dos nossos produtos de papel higiénico, aqui a história inverteu-se. Para entrarmos em algumas revistas de moda com publicidade tive que pedir autorização ao diretor das publicações.

O papel higiénico saltou assim para as notícias como um produto. Isto mudou a perceção da marca e deu-nos legitimidade na indústria.

Enquanto o papel higiénico era um assunto tabu, as pessoas não falavam à mesa sobre ele, o ato de compra era quase envergonhado; agora todos começaram a ter opinião. E chegou a ser vendido em Nova Iorque em lojas de vinhos. De repente, passou a ser um objeto (de decoração), com o qual as pessoas passaram a ter uma relação afetiva.

O papel higiénico preto – A primeira censura está dentro de nós
A ideia do papel higiénico preto nasce num espetáculo do Cirque de Soleil, em Las Vegas. Na vida, eu acredito muito em encontros, em ligar coisas, assim considero que seja a minha vida. Fui a Las Vegas na sequência de um convite de uma associação de pós-graduados portugueses nos EUA, que se reúnem anualmente. Pediram-me para ir falar sobre inovação em Harvard, onde realizariam a reunião naquele ano. Combinei com a minha diretora de Marketing encontrarmo-nos depois em Las Vegas, porque tinha um certo fascínio por conhecer a cidade.

Tinha lido um livro de um professor IES Bueno, especialista em produtos de consumo que falava sobre Capitalismo Ficção, que analisava o capitalismo em diversas fases: uma primeira na produção, uma segunda comercial (publicidade/marketing) e uma terceira fase que dizia que os produtos eram todos ficcionados. Este dava como protótipo Las Vegas, uma cidade feita no meio do deserto, sem nada, onde as pessoas vão para gastar dinheiro e saem contentes. Aprendi imenso naquela visita, e o papel higiénico preto vem daí, do Cirque du Soleil. Havia um espetáculo que se chamava Desminiti, para adultos, em que as pessoas estavam meio despidas. Dele faziam parte um casal de trapezistas com panos pretos, em que era só a cor de pele e a cor preta. Mas, antes de ir ali, tinha estado num shooting da Renova em Paris, feito com um casal de modelos e que foi muito polémico e proibido em França; seriam rostos, pele e rolos de papel higiénico no chão. Quando vi os panos pretos, com os corpos, percebi que devíamos ter feito o anúncio com rolos de papel higiénico preto.

Não acho muito interessante a mensagem “sigam os vossos sonhos”; acho que as pessoas devem ser muito curiosas, sigam a vossa curiosidade, é a mensagem que gosto de deixar.

Cuca Roseta: Aí é que se aprende…

Paulo Pereira da Silva: Exato. Sigam a vossa curiosidade sem nenhum objetivo.

Cuca Roseta: Um dia fará sentido…

Paulo Pereira da Silva: A partir daí avançou a ideia do papel higiénico preto. A indústria do papel é de capital intensivo, com máquinas enormes que trabalham 24 horas por dia. É um custo enorme fazer parar uma destas máquinas. Agora imaginem ter que parar uma máquina para produzir papel higiénico preto e depois esperar uma semana para limpar as fibras pretas das tubagens. A vida inteira os nossos operadores são pressionados para não pararem, quando deram com o presidente a pedir para imprimirem um lote preto acharam que eu estava louco…(risos)

Muitas vezes, ao nível da inovação, a primeira censura está dentro de nós próprios. Talvez a maior censura esteja na nossa cabeça. Se esta ideia não tivesse sido minha, talvez tivesse sido feita, porque quem a tivesse iria censurá-la e não a apresentaria porque a consideraria absurda.

Na nossa cantina, temos a sinalética “Why Not?” – foi o primeiro slogan do papel higiénico preto. Quando o lançámos, todos nos perguntavam porquê o papel higiénico preto, mas nunca, anteriormente, nos tinham perguntado o motivo de lançamento de qualquer outro produto (em 500). Eu fiquei tão incomodado que já respondia, “porque não”? A primeira censura está em nós próprios.

Entretanto, houve uma viagem presidencial à China, com o Presidente Jorge Sampaio, que teve a simpatia de me convidar. Num jantar em Pequim, numa mesa redonda com oito pessoas, fiquei na mesma do Presidente. De repente, Jorge Sampaio pergunta-me qual a mais recente inovação da Renova e eu respondi: papel higiénico preto. As pessoas estiveram 15 minutos, naquela mesa, a falar sobre isso. Foi a primeira vez que vi o potencial do produto. Nada foi por acaso, foram sucessões de curiosidades. Somos uma empresa muito pequena, para ter inovação não preciso de ter 100 I&Ds fechados numa sala à procura de ideias. Tenho sim de ter um trabalho em rede, pessoas muito curiosas a trabalharem com redes diferentes, a viajarem pelo mundo, a depurar ideias e adaptá-las de outros negócios na minha atividade. É muito difícil ter uma ideia original.

Para mim, inovação é declinar ideias que existem em outras indústrias, ou no mundo, para a minha atividade. Todas as minhas equipas de vendas, quando têm um bom ano, vão como prémio a Las
Vegas; ali, as pessoas, em todos os hotéis e em todo o lado, estão formatadas para vender, para satisfazer o cliente.

Luís Araújo: Inovação ligada aos valores que são nossos. Ou seja, procuram a inovação, em todo o mundo, mas depois tentam reinterpretar essa inovação à vossa atividade, aos vossos valores; talvez isso tenha mais razão de ser e ganha mais escala, porque tem a ver com a Renova.

Paulo Pereira da Silva: Tem que haver honestidade, autenticidade, da inovação ter a ver connosco. Eu trabalho marcas e o que mais gosto é de trabalhar uma marca.

 

A dualidade entre tradição e modernidade

Luís Araújo: Mesmo que essa autenticidade seja contra as tendências mundiais?

Paulo Pereira da Silva: Eu não sei se hoje existem tendências mundiais. Hoje em dia existe de tudo no mundo e cada vez há mais hibricidade. Um dos problemas de Portugal é que não tem marcas globais. Teremos duas: uma é Cristiano Ronaldo e outra é Lisboa, mas será politicamente incorreto dizê-lo. Trabalhar uma marca é muito importante, cria-se valor. O Turismo de Portugal está a fazer muito bem esse trabalho, de criação de marcas, de maneira muito subtil.

Pedro Chenrim: E agora vamos até ao Fado…

Cuca Roseta: O fado é Portugal e Portugal é fado lá fora. O fado tem muito a ver com o turismo neste sentido: somos embaixadores de Portugal e daquilo que Portugal é, lá fora. As pessoas olham para nós e veem a imagem de Portugal. O fado é um cartão-de-visita para o país, da mesma forma que o turismo também o é. Ao mesmo tempo, estas duas áreas pretendem manter a tradição e não parar no tempo. Ou seja, deixar as raízes intactas, mas adaptando-se aos tempos modernos. Esta nova geração de fadistas também é um pouco a resposta a esta pergunta, assim como a Amália o foi.

Quando a Amália apareceu foi um escândalo perante a sociedade, porque começou a cantar os grandes poetas, tirou um pouco o fado das ruas, onde ele nasceu, da classe mais pobre, sendo extremamente criticada. Depois começou a fazer refrões e também foi extremamente criticada; diziam que não seria fado, mas sim algo como fado-canção e afirmavam que ela não era fadista. O primeiro concerto que Amália deu em Portugal foi com 60 anos, tendo cantado antes no mundo inteiro. A Amália, assim como a nova geração de fadistas, é o espelho da dualidade entre tradição e modernidade. A Amália fazia o que sentia, a verdade é que levou o fado e o país lá para fora e só este tipo de fado fazia sucesso lá fora. O fado tradicional que adoro e gosto imenso, do vadio ao da senhora do taxista e da cozinheira que vem cantar e o faz com sentimento e que conta uma história triste, uma história de vida, que tem muito a ver com Portugal, um lado mais “Sebastianista”, mais “queixinhas”, não era propriamente o que resultava lá fora. O que resultava lá fora era a tristeza da Amália, a sua melancolia, através de grandes poetas e grandes compositores.

A Amália também inovou nos instrumentos, foi a primeira a incluir o baixo, foi também ela que introduziu o preto e o xaile no fado. Agora, a nova geração de fadistas deixou de usar o preto e começa a usar as cores, deixou de usar o xaile, porque determinadas coisas deixaram de fazer tanto sentido. Nós trazemos letras novas, chamando mais jovens por aquilo que cantamos, porque as pessoas se identificam mais com as histórias que contamos. Neste aspeto, trazemos modernidade. Mas o fado mantem-se intacto, é declamação de poesia, tem esta melancolia,
com a guitarra portuguesa, ou seja, há coisas que não podem mudar.

O turismo tem os mesmos desafios que o fado no sentido de sabermos como vamos levar Portugal de uma forma moderna, mas valorizando a nossa tradição, que é incrível. Eu sou uma apaixonada pela tradição portuguesa, caso contrário não seria fadista. Por exemplo, para as minhas roupas comecei a ir buscar os bordados de Viana e Castelo Branco, a usar uns macacões justos de forma a estar mais sexy e moderna, mas numa roupa feita com bordados e ouro, que fazem parte da nossa tradição. Temos uma tradição regional incrível a este nível que tenho tentado ir buscar e mostrar lá fora de uma forma mais moderna, e em Portugal também. Isso tem resultado, tem de ser feito com respeito pelos valores e tradições.

Luís Araújo: O que nunca muda? Qual é o fio condutor entre a Amália e uma fadista de agora? Nós estimulamos o setor do turismo a estar atentos à inovação, à moda, às tendências, mas temos de garantir que há uma base. A minha dúvida é se essa base é a mesma para o fado, para uma indústria ou para o turismo, ou se pode ser diferente. Se essa base é a mesma, qual é essa base?

Paulo Pereira da Silva: São as pessoas, e o seu ADN.

Cuca Roseta: Tem a ver com as pessoas e com a sua cultura. Há uma japonesa que canta fado no Japão e canta muito bem, mas não é fado. A melancolia e tristeza do fado estão relacionadas com o facto de sermos um povo quente, afetivo. Sinto isso quando vou cantar à Polónia ou a países em que as pessoas são um pouco mais distantes. No fado, o modo como cantamos, esta forma de ser, a mão na anca, a atitude, a tristeza, a intensidade chorada… é arrasador. Há algo que temos na nossa cultura, na nossa tradição, que não muda. O protagonista do fado tem de trazer esta paixão, esta melancolia, tristeza e intensidade consigo.

Luís Araújo: Nós podemos perder autenticidade por estarmos a ser “invadidos” por 27 milhões de turistas? Acredito que nunca a iremos perder se formos fiéis a essa verdade. Estive num debate na Califórnia com o responsável do Turismo de Madrid e mostrei o nosso vídeo do “Can´t Skip Portugal”, muito melancólico, muito profundo, muito à procura do interior das pessoas, e ele um filme de flamenco. Foi um choque total. Houve um americano que me perguntou qual a diferença entre um espanhol e um português, o de Madrid ficou a pensar, eu como sou metade/metade, expliquei que um espanhol salta para cima da mesa para os convencer do que quer dizer, o português vai um a um.

Cuca Roseta: É de uma forma mais subtil.

Luís Araújo: Sim, somos muito mais subtis. Para mim, a palavra que define fado é a verdade; senão houver verdade não se passa emoção.

 

*Leia aqui a 2ª parte desta reportagem.