Há alguns meses atrás, Luís Araújo, presidente do Turismo de Portugal, por proposta da Ambitur, promoveu um encontro inédito na Escola de Hotelaria e Turismo de Lisboa. Sentou à mesma mesa Cuca Roseta, fadista, e Paulo Pereira da Silva, CEO da Renova, para se falar de inovação. Poderia a inovação do Fado e da Renova, duas marcas nacionais de projeção em todo o mundo, influenciar a dinâmica empreendedora e de inovação que se verificava no turismo nacional a ir mais além? Hoje, tudo mudou, mas será que só nas aparências, porque no final de contas, a essência do empreendedorismo e da inovação empresarial irá manter-se, adaptando-se a novas realidades? Publicamos agora a reportagem que resulta dessa iniciativa, onde se fala na autenticidade, paixão, em como as novas gerações de portugueses estão a abrir os seus horizontes, da vergonha, da curiosidade, de como os consumidores se devem tornar fãs. Será que a inovação no Fado e na Renova, através das experiências de Cuca Roseta e de Paulo Pereira da Silva, poderão inspirar o Turismo? Publicamos agora a segunda parte destas Conversas Trocadas.
Pedro Chenrim: De consumidores a fãs, uma sugestão que retiro do Paulo Pereira da Silva. Se no campo artístico cultural é uma denominação muito habitual, será que poderá ser facilmente transposta para o campo turístico?
Paulo Pereira da Silva: Detesto que me chamem consumidor, não gosto dessa palavra. Gosto da palavra cidadãos porque gosto da liberdade e da liberdade de escolha. Gosto do conceito de cidadania ligada à liberdade. (Uma cidadania mais ligada à Grécia antiga do que à Revolução francesa.)
Um dia estava a ser entrevistado por um autor americano que escreve sobre marcas, e é um fã da Renova e que fez um PodCast sobre a empresa, e diz-me: “não, desculpe, isso não são consumidores, são fãs da marca”. Achei muito engraçado porque considero que muita da nossa inovação vem dos nossos fãs. As marcas têm de ser capazes de gerir fãs. No show-business conseguem gerir muito bem os fãs. A Madonna consegue reinventar-se sempre para eles ou com eles. Mas se um dia fazem algo que não é de acordo com o que esperam, não lhe perdoam. Os fãs são muito duros, podem perdoar uma vez, mas não perdoam a segunda.
Cuca Roseta: É verdade…
Luís Araújo: Portanto é muito importante trabalhar essa fidelização dos fãs.
Paulo Pereira da Silva: Tenho centenas de mensagens por dia de Instagram de fãs da Renova, porque as pessoas gostam muito mais de caras do que de marcas, por mais terrível que seja.
Cuca Roseta: É o mundo da imagem.
Paulo Pereira da Silva: Eu sou o CEO e a empresa não é minha. Utilizo a minha imagem, mas não sou pago por isso. Às vezes os meus acionistas até podem pensar que me estou a promover a mim e não percebem que é ao contrário. Temos que fazer uma gestão cuidada neste campo.
Como estava a dizer, recebo uma mensagem, depois das fotos de São Tomé, a dizer: “ainda bem que está num sítio tão bonito, espero que venha cheio de ideias pois há muita gente que vive das suas ideias”. Ou seja, tenho um fã que já me está a encomendar ideias e que não me deixou descansar o resto das férias que estava a ter em São Tomé, para vir cheio de ideias.
Luís Araújo: Nesta questão de dar ideias e da partilha das ideias, o setor do turismo em certa medida é muito fechado. Se eu tiver uma ideia para um hotel escondo-a o mais possível. Não acham que esta partilha é 10 vezes melhor, até numa ótica de crescimento e de escala de todos…
Paulo Pereira da Silva: Os fãs esperam imaginação, inovação, não que se copie ideias de outros.
Cuca Roseta: Esperam que sejamos um poço de criatividade. Mas não se tem sempre imaginação.
Luís Araújo: Mas há um limite para essa inovação, para essa criatividade…
Paulo Pereira da Silva: Acredito que não há limite. Mas acredito nos humanos e na sua criatividade. Cada vez há mais coisas híbridas e penso que menos modas. Há mais tribos, mais coisas diferentes.
Luís Araújo: Determinadas pessoas sentem mais aquilo que cantamos, dizia a Cuca, por exemplo, de nacionalidades diferentes. No turismo também podemos ter mais afinidade com determinados mercados do que com outros. Isso significa que são esses aqueles em que devemos apostar mais?
Cuca Roseta: Pode ser um desafio maior conquistar determinado público, mas isso, em mim, provoca um maior desejo em lá ir. Claro que isso me obriga a perceber que tipo de músicas tenho e o que tenho que ir mudando para esse concerto, tenho que perceber ao que as pessoas poderão corresponder melhor.
Luís Araújo: Citando o Paulo, a geografia é só mais uma rede. E é verdade que a delimitação geográfica é só mais uma componente. Dentro do próprio país temos públicos diferentes.
Pedro Chenrim: Da mesma forma que um fadista procura poemas para declamar, o turismo procura conteúdos para mostrar. Sendo que os dois pretendem proporcionar experiências aos seus interlocutores. Como se despertam os sentidos das pessoas em experiências que se tornem válidas de acordo com as suas expectativas? Do que não nos devemos esquecer?
Cuca Roseta: Tanto o fado como o turismo quando vão falar com o seu público levam Portugal, e temos de levar emoções que permitam criar experiências em qualquer público, por mais difícil que seja. É desta forma que levo o nosso país.
É necessário criar marcas
Pedro Chenrim: O que deve ser a ambição? Que fronteiras devem existir?
Cuca Roseta: Eu tenho mesmo uma paixão pelo nosso país e penso que é esta paixão que o turismo pretende vender lá fora. A minha ambição é que as pessoas passem a conhecer e fiquem interessadas em Portugal. Também quanto mais viajo, mais amo Portugal. Quando vou lá para fora e levo a minha música, os meus poemas, muitos não os compreendem. O nosso papel enquanto fadistas e a nossa ambição é esta mesma, mostrar um país. Um país incrível, pelo qual tenho uma paixão gigante, e tento puxar as pessoas a virem, que se apaixonem pela música. Acredito que a música é o que mais une as pessoas para lá das fronteiras, para lá da língua. Vai direto às emoções, aos afetos. Esta pode ser uma arma gigante para a promoção do país. Colocamos as pessoas a sentir este país, porque esta música é só nossa, não há igual. Eu vejo tudo através do fado.
Luís Araújo: A ambição é convencermos as pessoas, uma a uma, que o país é bom, sedutor. Eu não canto, mas também não desisto enquanto eles não ficam convencidos de que é o país mais bonito para se visitar.
Paulo Pereira da Silva: A primeira coisa que gosto é que a pessoa goste da experiência que tem comigo. Depois de gostar dessa experiência que fique surpreendida, com vontade de descobrir aquilo que está por detrás. A marca Itália é feita pela soma das marcas italianas que são fortíssimas. Igual relativamente à marca França. Acho que em Portugal muitas vezes tentou fazer-se a coisa ao contrário, falar-se de Portugal e tentar que todas as outras a sigam. Isto não funciona assim. Será a partir de muitas Cucas Rosetas, de pessoas que trabalhem e façam bem, que o país sairá valorizado. Depois acrescentarão todos valores uns aos outros, em rede.
Pedro Chenrim: O Turismo de Portugal tem trabalhado marcas, a “criação” da onda gigante da Nazaré, é um exemplo…
Paulo Pereira da Silva: A onda da Nazaré merece um Prémio Nobel. Para mim um destino não é uma marca, é uma coisa maior, mas a onda da Nazaré é.
Luís Araújo: Dizer que Portugal não é uma marca é um grande elogio.
Paulo Pereira da Silva: Começam a aparecer mais marcas ligadas ao turismo, verdade. O caso do Alentejo, por exemplo.
Pedro Chenrim: “O papel higiénico não tem de ser um produto envergonhado”, indica Paulo Pereira. Transponho a frase para o fado e para o turismo. Como se pode ir mais longe nos conceitos que nos propomos a desenvolver. Que linhas devemos manter, que linhas devemos ultrapassar?
Luís Araújo: Isso aplica-se aos dois realmente. Só comecei a gostar de fado desde que vivi quatro anos no Brasil.
Cuca Roseta: Sim, sim, porque às vezes é uma vergonha dizer-se que se gosta de fado. Quando era mais nova e dizia que cantava fado as pessoas diziam que horror.
Luís Araújo: O papel higiénico não é envergonhado?
Paulo Pereira da Silva: Continua a ser, de certo modo.
Luís Araújo: Um dos momentos em que senti mais orgulho foi chegar a Cuba e ver no hotel os kleenex a dizerem Renova. Mas é engraçado porque realmente devíamos deixar de ser envergonhados e assumirmos aquilo que somos.
Pedro Chenrim: Hoje temos um país sem vergonha?
Cuca Roseta: Sim, há uma mudança.
Paulo Pereira da Silva: As pessoas estão a assumir aquilo que gostam, sente-se isso. Estamos a assistir a gerações que não são envergonhadas, são muito mais seguras de si. Mas mantendo a nossa postura, não uma postura espanhola.
Luis Araújo: As nossas empresas, empresários, startups devem saltar para cima da mesa?
Cuca Roseta: Nós nunca lutamos dessa maneira…
Paulo Pereira da Silva: O Cristiano Ronaldo talvez… (risos) Mas ele aí não é muito português.
Luis Araújo: Nasceu na Madeira, mas realmente é um cidadão do mundo.
Pedro Chenrim: Sendo embaixadores da inovação de Portugal, que desafios gostavam de partilhar?
Paulo Pereira da Silva: É necessário criar marcas, é uma coisa que me é muito cara. As coisas podem mudar mas a marca fica, perdura, é um valor que fica e que é cativado pelo país, porque se estivermos a fazer algo de muito bom para os outros, estes é que vão ficar com o valor e não nós. As pessoas têm de arriscar. Não ter medo de arriscar. Em Portugal as pessoas têm imenso medo do insucesso.
Em Portugal uma coisa negativa é a inveja, as pessoas quase que têm gosto com o insucesso dos outros. Costumo dizer que nunca houve um projeto que me saísse bem à primeira. Erra-se, muda-se um bocadinho… É necessário ter capacidade e coragem de arriscar, de corrigir os erros, ter capacidade de adaptar ao mundo, que está a mudar, e ter uma enorme curiosidade. A vida vale a pena ser vivida, vale a pena correr riscos.
Cuca Roseta: Concordo, a personalidade portuguesa não arrisca. Este é um país que à partida tem sempre medo, prefere sempre mais copiar, tem vergonha de errar. Lembro-me dos primeiros poemas que escrevi, que para alguns foram um atentado, na altura, porque não havia fadistas a escrever, e houve, inclusive, duas revistas que disseram muito mal dos meus poemas. Continuei a escrever, pois sou muito teimosa, e já tive alguns poetas – Vasco Graça Moura, por exemplo – que gostaram da minha poesia, incentivando-me a continuar. No dia em que ouvi isso só pensei se tivesse desistido há 10 anos atrás… Nunca mais tinha escrito. Um pouco também o que aconteceu em determinada altura com a Amália.
Luís Araújo: Sempre que se dá a abertura dos anos letivos, nas Escolas do Turismo de Portugal, dou uma espécie de aula de receção aos novos alunos, em que peço três coisas: a primeira que se questionam se são felizes com o que fazem, se acrescentam algum valor onde se inserem; a segunda, que tenham curiosidade; a terceira, que sejam eles próprios, em todos os momentos da vida, seja na escola ou em casa.
Cuca Roseta: A educação é fulcral, é um ponto muito importante em tudo o que falámos.
Luís Araújo: Como se faz esta transmissão de valores ou como se corrige?
Paulo Pereira da Silva: Está a ser passado às novas gerações. Hoje os mais velhos passam essas mensagens, não vivam a vida dos vossos professores ou dos vossos pais, vivam a vossa. A vida é vossa (estudantes). Agora a aventura está dentro dos portugueses, não está é a gestão. Há muitos anos, enquanto os trabalhadores nacionais eram elogiados na Suíça, aqui não. Mas olhando, o problema que existia era de gestão das empresas, no entanto, as críticas eram dirigidas aos colaboradores.
Para fazermos as coisas, em primeiro lugar, temos de ter a noção da nossa dimensão. Isso não nos deve limitar, mas obriga-nos a fazer as coisas um pouco de maneira diferente. O nosso drama é ter a noção da nossa dimensão.
Luís Araújo: Mas estamos muito à frente, hoje, daquilo que se faz em muitos sítios do mundo. A necessidade aguça o engenho.
Paulo Pereira da Silva: Sim, porque senão não existíamos.
*Leia aqui a 1ª Parte desta reportagem.