Raio X das agências de viagens III: Impactos da Crise Sanitária no Turismo Mundial

Maria José Silva, investigadora, Professora Doutorada Especialista em Turismo, nomeadamente Operação e Distribuição Turística, Redes e Liderança Estratégica, e CEO da RAVT, efetuou um estudo sobre o impacto da Covid-19 na operação e distribuição, analisando as perceções da e sobre a liderança estratégica do setor na gestão de crise. A Ambitur tem vindo a publicar algumas partes deste extenso trabalho que pretende contribuir para uma melhor qualificação de recursos humanos e das organizações, bem como para melhor prevenir, planear e atuar em futuras situações de irregularidades com impactos extremos no turismo.

Depois de termos dedicado a semana passada aos impactos da Covid-19 na operação, distribuição e comercialização de produtos e destinos turísticos, debruçando-nos sobre as crises no turismo e a liderança estratégica no turismo em resposta à crise, chegou a vez de falarmos sobre o impacto da crise no turismo a nível mundial. O que é facto é que nem na 2ª Guerra Mundial o setor “sofreu tamanha severidade”, admite a investigadora, que quis por isso analisar os impactos nos diferentes subsetores para que “as lições aprendidas com esta calamidade possam ficar connosco” e se consigam implementar estratégias preventivas e melhores formas de responder a uma próxima crise.

Turismo 2019 versus 2020

Assim, Maria José Silva leva-nos de volta a 2019, altura em que o turismo registou 1,500 mil milhões de chegadas internacionais, após 10 anos consecutivos de crescimento sustentado. Criou 7% do comércio global, empregou uma em cada 10 pessoas do mundo e duas em cada 10 em Portugal.

Segundo dados de organizações mundiais, a nível global, o turismo é o 3º maior setor exportador, representando 6,8% das exportações totais, 27,4% do total de serviços exportados, chegando até 50% do total de exportações para muitos dos países em desenvolvimento. Tem sido para todas as economias e países, um dos setores chave que cresce a um ritmo mais acelerado do que a economia mundial.

No relatório de Impacto Económico da WTTC, nos barómetros da OMT e na European Travel Commission – ETC, em 2019 o turismo representou 10,4%, 9.170 mil milhões de dólares, do PIB global; 10,6% do emprego mundial (334 milhões) e foi responsável pela criação de um em quatro novos empregos em todo o mundo.

O gasto do turismo internacional atingiu 1.700 mil milhões de dólares e o do turismo doméstico aproximadamente 4.300 mil milhões.

Os principais meios de transporte foram o transporte aéreo (50%), 35% terrestre, 5% marítimo e fluvial, e 1% ferroviário.

A Europa conta com mais de metade (51%) das chegadas internacionais, seguida da Ásia e Pacífico com 25%, as Américas representam 15%, África e Médio Oriente 4%. Em termos de receita turística, a Europa tem uma representação menor, mantendo-se na mesma no topo com 39%. Segue-se a Ásia e Pacifico com 30%, as Américas com 23%, Médio Oriente com 5% e África com 3%.

De acordo com dados da IATA, “o transporte aéreo sofreu um forte embate da crise sanitária COVID-19, com o tráfego de passageiros limitado, apesar da carga apresentar receitas resilientes”. O declínio no transporte de passageiros foi o maior desde que se registam RPK (Revenue Pax-Km), em 1950, registando uma quebra de 65,9%. Em 2020, registaram-se menos 50% de lugares nas companhias aéreas e 371 mil milhões de dólares de operações de passageiros. Verificou-se uma quebra de 74% de tráfego de passageiros internacionais e quebra de 50% no tráfego doméstico.

Em 2021 verifica-se uma quebra menor no primeiro semestre, em relação ao mesmo período homólogo de 2020. Segundo os dados da IATA (2021) ainda se registam -66,7%, derivados de -33,1% de RPK doméstico e -85,8% Internacional.

Analisando por regiões, a IATA (2021) regista o share do tráfego aéreo total, com destaque para a região da Ásia e Sul Pacífico (40,9%), seguida da América do Norte (24,8%) e só depois a Europa (24%), contrariamente a anos anteriores, em que a Europa era a região com maior share.

Na sua análise, a investigadora recorda que os movimentos de passageiros nos transportes têm reflexo na hotelaria mundial. A STR e a ETC, em 2021, registam que o alojamento turístico afundou sem precedentes, com quebras de ocupação de pelo menos 30% nas regiões menos afetadas, devido às restrições à mobilidade externa, mas também interna dos países. As quebras do ADR (Available Daily Rates) são entre 20% na Ásia e Pacífico e 19% na Europa. Em relação aos RevPar, todos os segmentos estão com quebras superiores a 45%, sendo a Europa a mais afetada (-63%) e o Médio Oriente o menos afetado (-46%).

Maria José Silva sublinha que a situação da indústria do turismo tem sido dramática desde 2020, com a perda de 62 milhões de empregos só nesse ano (-18,5%), sobretudo a nível das micro e PME’s, que têm um peso de 80% no setor. E lembra que estas quebras só não foram mais acentuadas devido às ações proativas dos governos.

A situação em Portugal

No que diz respeito ao contexto nacional, também se verificou uma forte contração da atividade económica, com efeitos nocivos para o turismo, a maior indústria exportadora de serviços com um share de 52,3%, e 19,7% do total de exportações, em 2019, altura em que contribuiu diretamente para 8,7% do PIB.

Segundo os resultados da balança de pagamentos, de 2020, do Banco de Portugal, as receitas turísticas registam uma quebra de 62,2% no saldo da rubrica de viagens e turismo, quando em 2019, revelavam crescimento de +5,1%. As receitas das exportações (incoming) diminuíram cerca de 57,6% face a 2019, quando se registou +7,3, totalizando apenas cerca de 7.8 mil milhões de euros. As despesas em viagem e turismo das importações (outgoing) registaram igualmente forte quebra em 2020, de -46,1%, quando em 2019 se registara um crescimento de 13,1%, situando-se em 2.8 mil milhões de euros.

O turismo de cruzeiros teve um decréscimo de 84% nos movimentos de passageiros em relação a 2019. A aviação, segundo dados do NAV Portugal & Rolo (2021), registou em 2020 o pior registo desde 1998 em Portugal, com apenas 345 mil voos, representando uma quebra de 58% em relação a 2019, ano em que se verificaram 816 mil voos comerciais no espaço aéreo português. Em toda a rede da Eurocontrol a quebra foi de 55%, valores abaixo de Portugal. As chegadas de não residentes atingiram 6,5 milhões, correspondendo a -73,7% em relação a 2019 (crescimento de 7,9%). O total de chegadas no transporte aéreo em Portugal, em 2019 foi de 29.3 milhões, e em 2020 apenas 8.8 milhões (INE, 2021).

Quanto ao alojamento turístico e às dormidas, sofreram um impacto forte em 2020 e registaram 11,7 milhões de hóspedes, ou seja, -60,4% (+ 7,4% em 2019) e 30.3 milhões (-1,1%) de dormidas (+4,3% em 2019), sendo que estes números incluem os crescimentos dos meses de janeiro de 2020 (+8,2%) e fevereiro (+14,1%) que atenuaram a quebra. A hotelaria concentra 76,9% da capacidade de cama e 30,3% do total de estabelecimentos no alojamento turístico. Na hotelaria a quebra de dormidas geral, em 2020, é superior a 65% e a estada média geral reduziu 6%, para 2.53 noites.

A nível regional, no alojamento turístico no global, apesar da quebra generalizada, notou-se um desvio de fluxos, sendo que as áreas costeiras e litorais registaram piores indicadores de dormidas (-66%) e as áreas interiores ou rurais -48,3%.

Nas viagens, os residentes deslocaram-se, maioritariamente, em Portugal (34,5%) e apenas 1,6% se deslocaram a países estrangeiros (-5p.p.). Dos que realizaram viagens tanto fora de Portugal como no país, 2,9%, o número é também inferior a 2019 que registou 11%. Isto indica que a deslocação dos residentes (14,4%) decreceu 41,1%, quando em 2019 registava aumentos de 10,8%, tornando estes valores, os mais baixos de uma década.

A marcação de férias através da operação e distribuição turística manteve a tendência decrescente que se tem verificado ao longo dos últimos cinco anos, centrando-se em 3,8% do total das viagens dos residentes, com redução mais acentuada de 2.3pp. (-0.3pp. em 2019). Nas deslocações ao estrangeiro representa, 19,8% do total, -9.5pp. face a 2019, e nas deslocações no país, 3%, com crescimento de 0.3pp., sendo que apenas nos motivos de viagens profissionais se regista maior expressão, com 11.1% do total de viagens. O recurso a viagens sem intermediação regista 27.6% do total de viagens.

Estes dados, sublinha Maria José Silva, criaram dificuldades sérias na liquidez na operação e distribuição turística, uma vez que para além de quebras fortes, o produto que foi mais procurado foram serviços soltos, de hotelaria e em Portugal, que leva a que marquem mais diretamente nas unidades e recorram a transportes individuais próprios terrestres que não necessitam de reserva via intermediários, na ótica do consumidor final. O alojamento com registos mais significativos foi o alojamento local, que também foge um pouco ao consumo pelas agências de viagens.

Impactos na Operações Turísticas – oferta e procura

As restrições nas viagens tiveram impactos extremos na cadeia de valor do turismo e nos setores conexos.

As entidades turísticas lançaram diversas campanhas e mensagens, ao longo das várias fases da crise sanitária, para não perderem a ligação ao potencial turista, criando sempre o desejo de viajar e estimulando as emoções mais nobres e o imaginário, revela a investigadora. E recorda que as imagens, vídeos ou informações nas redes sociais foram a forma mais rápida, mais acessível e eficaz de chegar a todos os públicos-alvo, sendo que muitos dos colaboradores não tinham acesso nem aos seus emails de trabalho, nem aos computadores fixos, nem aos telefones das empresas, por estarem em teletrabalho, mas tinham, mais do que nunca, de estar informados sobre os assuntos, leis e procedimentos, para dar uma resposta rápida e resolver as irregularidades em catadupa em todo lado. “Foram tantas as mudanças operacionais, técnicas e legais, até de apoios diversos às empresas, aos recursos humanos, de tecnologias e de tudo, nas empresas sem capacidade financeira suficientes para tantos ajustes, que a gestão de tanta mudança, caos e informação com tantas regras de entradas e saídas foi deveras difícil”, realça Maria José Silva.

Neste cenário, a CEO da RAVT frisa que o trabalho da operação e distribuição turística se tornou complexo e instável, não só pela variável económica como também pela necessidade de informação para as operações, complexidade que ainda hoje vigora.

E detalha que para uma viagem simples é necessário cruzar uma infinidade de parâmetros que se juntam aos requisitos obrigatórios de antes (vistos, vacinas, registos, seguros, moeda, etc) com novos elementos que resultaram da Covid-19: regras de saída e regresso do país de origem e de destino, regras de transporte da companhia aérea, nacionalidade dos passageiros, países visitados nos últimos 14 dias, testes a fazer e prazos, declarações obrigatórias, entre vários outros requisitos.

Os governos, juntamente com a comunidade europeia, tiveram que criar protocolos de apoio às empresas e recursos humanos, que se depararam sem liquidez, sendo que até aí se criou mais um caos. E, segundo registos de atividades e feedback de diversas associações, confederações e agrupamentos de agências, os apoios foram tardios, em plataformas desajustadas, complexas, com burocracia demasiada, parâmetros incoerentes ou injustos.

Perante este caos, a investigadora aponta que a confiança das empresas e dos recursos humanos ficou abalada e muitos ativos do setor foram transferidos para outros, não só por falta de emprego como de formação e conhecimentos, ou pelo descrédito no futuro da indústria. Também a confiança dos clientes foi afetada, não só com as falhas dos serviços, voos atrasados, filas para tudo, documentos caducados ou medo de viajar.

Diz a análise de Maria José Silva que a procura turística se ajustou ao ambiente PEST e é indicadora de uma mudança na forma de viajar, no tipo de produtos, serviços e destinos turísticos que pretende. Foram diversas as entidades que foram monitorizando a procura e o sentimento de viajar.

Ao longo de 2020, e até ao primeiro semestre de 2021, algumas mudanças mais claras foram apontadas. Para viagens a curto prazo, é a segurança sanitária que tem maior enfoque. Verifica-se uma maior prioridade dada à segurança e menor preocupação com o preço apenas. Os hóspedes estão mais atentos à limpeza e ao cumprimento de medidas se segurança, preferindo também voos diretos e transportes individuais. Por outro lado, os horários e dias considerados fora de “hora de ponta” têm maior procura, com a procura a aumentar para destinos com menores aglomerados. Outra das alterações observou-se na maior procura por alojamento local ou pequenas unidades hoteleiras, bem como por atividades outdoor, de natureza ou wellness. O slow tourism passou a estar em destaque e os clientes optaram mais pelo interior ou pelo litoral menos massificado. A preferência por uma política de cancelamento flexível ganhou força, assim como as tarifas e reservas de última hora. Os consumidores sentiram mais necessidade de informação e de preparar as viagens com maior detalhe. Claro que a digitalização e o recurso a tecnologias ganharam peso, bem como os trabalhos híbridos.

 

Leia também:

“Raio X das agências de viagens I: Operação, distribuição e comercialização de produtos e destinos turísticos”

“Raio X das agências de viagens II: Impactos da Covid-19 na operação, distribuição e comercialização de produtos e destinos turísticos”.