Ele cabo-verdiano, ela portuguesa, juntaram os seus corpos, algures na cidade da Praia. Entrando na música, a sucessão de acordes faz com que os seus ritmos se encontrem, à noite. Por seu turno, as ondas desafinadas, da Cidade Velha, tentam esconder as pedras escuras que fazem parte da sua margem, onde rapazes e raparigas mulatas mergulham, com ar de quem vai encontrar um tesouro, para inveja de quem os observa, a meio do dia.
A Ilha de Santiago apresenta-se como um puzzle, onde as várias peças têm que ser encontradas e colocadas no sítio. Entre ritmos, falas, mergulhos, cores, é um daqueles destinos que tem o seu próprio tempo.
Em 1462, numa pequena porção de terra plana à beira do Atlântico, é fundado o primeiro colonato da Ilha de Santiago, capital do que hoje designamos de arquipélago de Cabo Verde, sendo também a primeira localidade, com funções específicas, fundada por europeus portugueses, na África subsaariana, antes chamada áfrica negra, e que corresponde à parte do continente africano situada ao sul do deserto do Saara. Originalmente Ribeira de Santiago, hoje a sua designação explicita o que já foi “Cidade Velha” e fica aproximadamente a 15 quilómetros da capital da Ilha de Santiago, cidade da Praia, sede política administrativa do arquipélago.
Ali jazem tempos idos, tenta-se conservar o que ainda resta, com o mesmo cenário que acompanhou a expansão marítima portuguesa, a partir da segunda década do século XV. Duas/ três ruas principais compõe o cenário, sob um chão empedrado, que muitas vezes se mistura com a terra ou nela se desfaz. As fachadas das casas são uma continuação dos arrumamentos, também de pedra, com maiores dimensões e variadas formas, mas de cor branca. Uma porta, duas janelas com a mesma tonalidade de cor, casas de traça simples, que marcam este pacato local, que pouco mais oferece do que a história do tempo, dois ou três monumentos que ainda não pereceram e alguma população jovem, que se entretém nos seus afazeres, sendo o mais visível os seus banhos num oceano que os marca para toda a vida.
José Moreira, responsável do Instituto do Património Cultura de Cabo Verde, acompanha a visita a uma das principais atrações da região, o Forte Real de São Filipe, que se ergue a 100 metros do nível do mar, e que hoje é considerado Património Mundial da Humanidade. Explica o responsável as datas históricas, os navegadores que por ali passaram e – apontando do forte para o núcleo principal da Cidade Vela – cita os nomes das suas ruas: “do Porto, da Confraria, Rua do Calhau e da Misericórdia, mais tarde constroem-se o hospital, presídio, igreja e o edifício da Câmara”.
Se a fundação deste colonato teve como principal missão o reabastecimento de água e alimentos frescos e também de reparações de embarcações das missões marítimas, nas imediações da Cidade Velha, há um vale, da Ribeira Grande, que faz parte da sua justificação. Aqui foram ao longo dos séculos locais de experiências de aclimatização de espécies agrícolas e animais entre três continentes, Europa, África e América. “Os primeiros coqueiros e bananeiras plantadas no Brasil, na Bahia, vieram daqui. Assim como os primeiros limoeiros e laranjeiras para a Europa”, refere José Moreira.
O cartão postal do Tarrafal
Na outra ponta da ilha, depois de um longo trajeto feito pelo seu interior, mais devido aos condicionantes da estrada do que a distância de 72 quilómetros, onde nos cruzamos com a segunda maior cidade de Santiago, a Assomada, encontra-se um dos locais mais vistosos da região: o Tarrafal. O postal da ilha de Santiago justifica-se não só por ser dos poucos locais de areia branca na ilha, mas pela acolhedora enseada, rodeada de coqueiros e de pequenos morros despidos ou com vegetação. A água, como a música, “morna”, faz de Cabo Verde um lugar predileto para danças e mergulhos.
As embarcações antigas dos pescadores, também fazem parte do cenário. Alinhadas, não nas ondas do mar, mas na ondulação da areia, formam uma palete de cores que vai do roxo, ao vermelho, azul marinho, azul escuro, amarelo, com o branco. Serão 20 os barcos que farão parte do álbum fotográfico de quem navegar até ao Tarrafal. Cães amistosos pela praia, não interferindo na intimidade de quem a frequenta, procuram um pouco de companhia e talvez alguma gulodice.
Na praia irrompe uma personagem, de alguidar à cabeça e catana na mão. Com um sorriso afável procura quem se queira refrescar com água de coco. O turbante, armado com dois lenços distintos, um cinza, outro laranja oxidado, que lhe suporta o alguidar, permite-lhe soltar uma mão sobre cintura. Desce o alguidar, tira um coco, dá ação à catana premiando o cliente que se segue. A senhora das águas de coco do Tarrafal deixa-se sempre ficar um pouco mais, com os visitantes que ali se encontram, acompanhando-os algumas vezes até à saída da praia.
O que era antes e apenas uma pequena vila piscatória começa hoje a ganhar dimensão pela procura turística, dando a perceber que a oferta de alojamento, de restauração e de compras começa a querer mudar o ritmo da sua economia.
Este é o novo tempo do Tarrafal, outro o marcou. “Vota: Sim, ao Progresso e Felicidade” é uma das frases pichadas nas paredes naquele que hoje se apelida como o “Campo da Morte Lenta”, um campo de concentração que o regime presidido por Salazar implementou neste território em 1936 e que recebeu presos políticos de Portugal até 1956, reabrindo mais tarde para receber presos políticos das ex-colónias do mesmo país. Sendo uma visita de pendor pesado, hoje o campo de concentração tem várias alas abertas ao público em forma de museu, com explicações detalhadas de qual o seu uso e dos principais acontecimentos que o marcaram. Resta uma citação, ali colocada, de um dos médicos do campo que dita: “não estou aqui para curar, mas para assinar certidões de óbito”.
A dança de Santiago
Ele cabo-verdiano, ela portuguesa, juntaram os seus corpos, algures na cidade da Praia. Entrando na música, a sucessão de acordes faz com que os seus ritmos se encontrem, à noite. A música solta-se num compasso binário, mas num andamento variável allegro, ligeiro e alegre. Ouve-se um género musical genuinamente cabo-verdiano, num ciclo de quintas, característica que é uma herança da morna, talvez não identificável pela maioria dos presentes.
O restaurante fica algures num prédio da cidade da Praia. São vários os restaurantes que servem gastronomia local e/ou internacional, com música ao vivo, sendo que a maior parte tem a tradicional cachupa, a moreia, peixes e mariscos frescos.
Ele, o Zezinho, que conduziu o grupo por Cabo Verde, dobra os joelhos, sapateia para um lado, quase sem tirar os pés do chão, e depois para o outro. Marca o compasso, balança a anca, o apoio está sobre a perna direita, a da esquerda está mais adiantada, provocando o movimento de corpo. Zezinho olha para baixo, tenta perceber se a sua parceira está ao mesmo ritmo. Marisa, uma agente de viagens portuguesa, sorri, tenta entrar no ritual, apanha o ritmo, e com a mão na mão do parceiro deixa-se conduzir.
A letra não é facilmente apreendida, pois o cantor fá-lo em crioulo cabo-verdiano, um crioulo que terá algum léxico de base portuguesa. A acompanhar o cantor dois instrumentalistas. Respeitando o tempo, os dois gingam, uma “coladeira” tornou-se a sua dança em Santiago.
Por Pedro Chenrim* Viagem de familiarização à Ilha de Santiago a convite da Solférias e TAP Portugal.
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